quarta-feira, 29 de julho de 2020

O chapéu que defende o descarregador



Foi no início da década de 1980 que uma francesa de Reims e um setubalense dos “Quatro Caminhos” se conheceram em Setúbal. Pretexto: o ofício dele. Passados anos (ela, a caminho do doutoramento; ele, “iletrado”), casaram-se e viveram entre Setúbal e Paris.

Noëlle Perez-Christiaens (1925-2019) e José Miguel da Fonseca (1932-2015) são os autores de Setúbal - ‘Quatro Caminhos’ et le ‘descarregador’ - Petit guide pour découvrir des choses cachées, livro editado pelo Institut Supérieur d’Aplomb (Paris, 1987). Noëlle, etnóloga, correra diversos países por mor da sua investigação - comunidades em que “as pessoas transportam à cabeça, porque, em geral, não sofrem nem das costas nem do pescoço” e, junto do Sado, em Setúbal, encontrou a colónia dos “descarregadores” de peixe, “homens belos como deuses, com uma forma de andar altiva e rápida”, “como árvores tranquilas apesar da brisa marinha”, “humildes”, “simples”. Impressionada, convenceu-os a serem radiografados nas suas posições naturais de trabalho (o primeiro voluntário foi Miguel), usando o característico chapéu de descarregador (utensílio candidato por Setúbal às 7 Maravilhas da Cultura Popular, na modalidade de artefactos), análise que jamais fora feita: “era a primeira vez que radiologistas viam colunas vertebrais em bom estado e as suas formas espantaram-nos”: os descarregadores conservavam o tórax com as características observáveis no “recém-nascido ou nas crianças ainda pequenas, sem as deformações pelas posturas que vão assumindo na escola”.

A investigação levou Noëlle Perez-Christiaens a conhecer as condições de vida desta comunidade (caracterização da cidade, vida na lota, alimentação, tipologia das casas, distracções), guiada por Miguel, havendo referências a outros companheiros de ofício como Ernesto, “Encarnadinho”, Eduardo, “No”, “Piguita”, Silvinho e “Limpinho”, entre outros. Entrar nestas formas de vida justifica o subtítulo escolhido, “pequeno guia para descobrir coisas escondidas”, chamando a atenção dos visitantes, onde quer que eles estejam, para sentirem os valores que o óbvio esconde.

O essencial desta obra visa explicar o contributo do transporte à cabeça para a manutenção da saúde da coluna: “não só o pescoço mobiliza a cabeça para suportar a carga, mas também todos os músculos dorsais, as costas, se ajustam em contra-peso, num movimento ágil e eficaz”, em que a coluna se estira e o tronco se alonga. Nesta acção entra o famoso chapéu do descarregador, utensílio “sagrado”, pois, “sem ele, a vida seria muito mais complicada”, tornando-se “amigo indispensável, que simplifica tudo” naquela profissão. Pela descrição de Noëlle, sobre a cabeça é usado um “lenço”, por cima do qual assenta a “barretina” e, depois, o chapéu (na altura, feito de tecidos grossos bem envolvidos em camada de óleo, hoje construído com outros materiais), circular, com larga aba de forma tubular, resistente à água, aqui se percebendo a sua função primeira: proteger o descarregador da água que escorre das canastras ou das caixas cheias de peixe, que, a partir do barco, transporta à cabeça. Podendo pesar cerca de dois quilos quando seco, o chapéu atinge seis quilos quando molhado, ajudando a suportar cestas que rondam os trinta quilos. Uma segunda função relaciona-se com o proveito próprio do descarregador - o peixe que caia da caixa e se mantenha na aba passa a pertencer-lhe; por outro lado, é também dentro dessas abas que o descarregador prepara o peixe para ser cozinhado. 

Noëlle Perez-Christiaens destacou o que se pode aprender com os descarregadores em termos de posturas corporais e, ao chamar Miguel para co-autor, homenageou este grupo e deu uma prova de gratidão e de amor a quem lhe desvendou este universo.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 446, 2020-07-29, pg. 5.


Sem comentários: