quarta-feira, 9 de julho de 2025

J. Rentes de Carvalho: o protagonista do Monte da Dor



Saiu em 1968 (edição recente na Quetzal) e foi o primeiro romance de José Rentes de Carvalho (n. 1930), indo buscar o título, Montedor, a um lugar da freguesia de Carreço. Da localidade pouco se fala, para lá de algumas curtas indicações como a proximidade com pescadores ou a vista para a Galiza, por exemplo, porque o que interessa é apresentar um retrato de uma personagem num espaço sem perspectivas e onde o horizonte parece apenas o que resulta da geografia.

Naquela década de 1950, o protagonista é um jovem que abandona os estudos, vai cumprir a tropa em Lisboa, regressa à terra, aguenta-se a viver à sombra dos pais, acalenta o sonho de partir e está cada vez mais enredado no círculo da aldeia, da família, das limitações que a organização social lhe vai impondo, quase sentindo sobre ele a maldição que a avó, um dia, lhe prescreveu — “este menino há-de trazer desgraça” —, revelada logo no início da história, e que a mãe manteve, ao dizer-lhe, no final da narrativa: “Às vezes, dá-me pena que sejas meu filho! Hás-de ser infeliz toda a vida!”

A necessidade de sair, de se libertar daquela terra, onde qualquer promessa de futuro dependeria do favor do abade ou de alguém muito bem colocado na vida, aquece a sua coragem, mas é, outras tantas vezes, motivo de desânimo, num regressar ao ponto de partida. Os sonhos (ir para Lisboa, para Paris, para a Austrália — o que lhe motiva uma chamada à polícia —, para a Marinha) ou as tentativas de os concretizar (pedindo dinheiro emprestado, roubando jóias da avó para as vender e obter dinheiro, encarar a tropa como possibilidade de alterar o curso da vida) regressam sempre ao espaço centrado na família e na casa (onde só o seu quarto parece ser refúgio de liberdade), na subserviência aos possíveis favores que alguém importante possa fazer. A dureza da sua luta interior encontra ecos em momentos como aquele em que o serviço militar em Lisboa se aproximava do final (num tempo em que o cumprimento da tropa era encarado como a grande possibilidade para mudar de vida) — “A tropa estava a acabar e, ao contrário dos mais, contava os dias com aflição, porque não me decidia a fugir - para onde? - e voltar a casa era entrar na gaiola donde o acaso me tirara.” —, ou aqueloutro em que, sentindo-se prisioneiro dos seus medos de arriscar, já na terra, desabafa consigo: “A remoer a puta da vida. (...) Por dentro é que sinto uma ânsia, a certeza dum desarranjo, coisas fora do seu lugar. Sem saber onde. Ânsia que se faz forte com marés, mas sempre presente. Um medo, para dizer a verdade.”

Os jornais e revistas de França que uma possível apoiante para novos caminhos lhe oferecia acentuam o desajustamento do jovem à sua situação — “Os comboios não me levam. Estes jornais falam dum mundo que não é fantasia, existe, um mundo de gente que cria, que vive. E eu? Sim, senhor abade. Não, senhor abade. Paizinho. Mãezinha. Não te esqueças da lavadeira, passa no Laurestim, vai ao sapateiro, entrega ao arcipreste. Moço de recados.” Nada do que o rodeia o entusiasma, a não ser as momentâneas paixões, uma das quais o levará a casamento forçado pelo pai da rapariga, solução que o protagonista acata mas não interioriza.

Quando o livro foi publicado, José Saramago apreciou-o nas páginas da Seara Nova (n.º 1472, Maio.1968), enaltecendo a linguagem utilizada, “que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor”, uma escrita que é parca na descrição e surge à medida dos pensamentos da personagem que se conta. Nessa nota, Saramago refere a persistência do protagonista e o ambiente social em que ele se move: “em tal luta não há nada de heróico, de exaltante. Nenhuns amanhãs cantam ou choram. Cada uma das personagens trata da sua vida ou vai à sua morte.” É assim violento o percurso deste jovem de quem o leitor espera a todo o momento que rompa com o estabelecido e corra pelos seus sonhos — e o sonho passava pela emigração, solução para muitas famílias — quando parece que a única coisa que acontece é a auto-destruição da personagem... No final, nem o nascimento da filha o pacifica e vai até ao rio — “caminho pela borda sem perigo, sem destino. Quando chego ao molhe volto para trás, procuro os cigarros, sento-me na areia. Ao bater na muralha a água faz contracorrente, remoinha, dizem que é bom sítio para apanhar enguias. Não oiço o barulho da estrada.”

Uma lenda sobre Montedor associa o nome a “Monte da Dor”, por, segundo a narração, ali terem perdido a vida dois apaixonados que viviam um amor contrariado (uma história à maneira da de Tristão e Isolda). Ainda que não pelos mesmos motivos, Montedor é a história do “monte da dor” deste protagonista que se conta, em conflito com a sociedade que lhe era imposta, fechada, limitada, subserviente, em busca da sua evasão, retrato forte de uma época em que o horizonte se relacionava com a mudança de vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1567, 2025-07-09, pg. 8.


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