Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.
Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.
De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”
No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”
A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.
Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”
A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.
O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.