O título aproxima-se do poético — O tanto que grita este silêncio. O subtítulo tira as dúvidas e diz ao que vem o livro — “Porque se abstêm os portugueses?” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025). Em nota de apresentação, o livro de Nelson Nunes (n. 1986) surge como “retrato” que visa “suprir uma lacuna no debate na esfera pública, dando voz aos reais protagonistas do abstencionismo em Portugal”, sob duas epígrafes: uma, de Jefferson, segundo o qual “não temos um governo pela maioria, temos um governo pela maioria que participa”; outra, de Céline, mais próxima do argumento de muitos abstencionistas — “Nunca votei em toda a minha vida. Sempre soube que os idiotas estão em maioria e sairão vencedores.”
O livro, integrado na colecção “Retratos da Fundação”, segue a estrutura habitual dos títulos que se albergam nesta série: normalmente de carácter jornalístico, respeitando os princípios de uma mais ou menos extensa reportagem, em que há espaço para muitas vozes (abstencionistas, analistas e estudiosos), explorando as respostas que possam levar ao “como” e ao “porquê” dos acontecimentos, e para reflexões pessoais do autor — aliás, a narrativa inicia-se com uma experiência vivida pelo autor, quando aluno do ensino secundário, numa aula de Introdução ao Direito, em que celebrou o seu compromisso: “Nunca hei de falhar uma eleição, porque a vida dá muitas voltas.”
Desde o início, o olhar sobre a abstenção recusa estigmatizar aqueles que têm optado por essa via: “Tenho uma outra proposta: ver os abstencionistas como adultos que tomam decisões em consciência. Que decidem activamente não votar. Com as suas razões.” Este propósito encaminha para algumas hipóteses, que o autor não omite: por um lado, “a política não está a comunicar de forma eficaz para chegar a todos, ou para satisfazer todos”; por outro, “os abstencionistas estão só à espera de ser ouvidos”, porque terão coisas a dizer.
Um dos entrevistados, no Porto, justifica a sua descrença nos políticos: “falta de compromisso político com o nosso país”, com “os próprios valores e ideias centrais da democracia viciados e facilmente corrompidos”. Idêntico sentimento perpassa por uma cidadã de Barcelos, octogenária, que deixou de votar, abstenção provocada por “uma zanga com os políticos, que, um atrás do outro, lhe vão faltando nas necessidades e lhe acertam em cheio no bolso e no bem-estar”. A falta de informação sobre os programas eleitorais e a indecisão quanto a opções foi a razão invocada por outra entrevistada da zona de Coimbra, influenciada pela ausência de estímulo para interesse por esta área quando era mais nova, mas a tentar pôr-se mais a par do que vai acontecendo. Não é por falta de informação que um emigrante na Irlanda não participa nos actos eleitorais — militante partidário na juventude, certo é que, “em dezoito anos de idade eleitoral, nunca votou”, muito influenciado pelo “temor de votar de forma pouco informada”. Também não falta informação a uma entrevistada que circula entre Braga e Porto, mas que optou pelo abstencionismo a partir do momento em que, nas eleições de 2015, se sentiu desrespeitada como eleitora por causa do “estratagema imprevisto” que aliou três partidos não vencedores de eleições para formarem governo. Mais radical parece ser a moradora em Odivelas, que, entre o votar em branco e o abster-se, larga a provocação: “Quase tenho vontade que haja um motim, uma revolta, em que todas as pessoas digam que não vão votar”, pois “não há nenhum partido em Portugal que nos dê segurança”. A navegar contra esta corrente, está o entrevistado de Rio de Mouro que deixou o abstencionismo para passar a ser participante no acto eleitoral, depois de um encontro com o amor e com a reflexão... que o fizeram considerar ser “perigoso deixar que uma pessoa qualquer governe os nossos destinos” e que, nas eleições, não se trata “de mim, trata-se de agirmos em conjunto”.
A decisão de votar pode estar relacionada com a proximidade de cada um com os partidos, com “a percepção de que o estilo de vida está em jogo”,... mas torna-se importante a convicção de Nelson Nunes — “os abstencionistas com quem tenho conversado revelam-se interessados por política, ainda que não se identifiquem com qualquer programa partidário”. Seja a dificuldade em ir votar, seja o desinteresse, seja o cansaço eleitoral ou qualquer outro condicionalismo que justifique a abstenção, a verdade é que contrariar esta prática exige esforço e descoberta de soluções — “simplificar o modo como se fala de política”, reorganizar os círculos eleitorais, aproximar os políticos relativamente às comunidades e trabalhar em prol das mesmas (sem que isso se verifique apenas em acto de campanha), agilizar os mecanismos que gerem confiança nas instituições e nos políticos e incutir responsabilidade aos cidadãos pela via da participação podem ser formas para tentar esbater a elevada abstenção. “O que falta é pôr os abstencionistas na comunicação social: libertá-los de um certo sentimento de vergonha, ouvi-los e perceber que caminho construtivo se pode desenvolver a partir daí” — tal é o esforço necessário e este livro de Nelson Nunes constitui um simpático contributo para essa reflexão, por certo indispensável.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1622, 2025-10-15, pg. 10.
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