quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (2)

 


A Arrábida representou para Sebastião da Gama o espaço de eleição e de descoberta, o tempo do encontro consigo e com o mundo, a motivação para a sentir poético. Data de 6 de Novembro de 1943 uma carta em que ele confidenciava a Joana Luísa: “No desenrolar da minha Poesia, cheguei à conclusão de que a missão do Poeta é, não só explicar aos outros a Grandeza da Criação Divina, mas tentar o aperfeiçoamento do Homem.” Os amigos que o acompanharam não esqueceram nunca essa busca que animava o jovem azeitonense — em 24 de Fevereiro de 1962, num texto sobre o amigo, Maria de Lourdes Belchior escrevia no Diário de Lisboa que “a sua vida recôndita, a que trazia nas entranhas da alma, enriqueceu-se e configurou-se nos contactos com a Serra-Mãe, nos longos silêncios de vagabundagem pelos caminhos da Arrábida” e, trinta anos depois, em Evocação de Sebastião da Gama (1993), David Mourão-Ferreira testemunhava que “na memória de alguns de nós, ei-lo ainda (...) aguardando-nos, à chegada da trôpega camioneta que nos tinha levado até Vila Nogueira de Azeitão, para logo a seguir nos arrastar a pé, serra acima, serra abaixo, por veredas de que só ele detinha o segredo, a fim de melhor nos fazer ver ou rever todos os recantos, todos os encantos da sua Arrábida.”

Esta ligação do poeta azeitonense à Serra, de que os amigos foram dando testemunho, exprimiu-a ele em muitas e variadas ocasiões. Em primeiro lugar, com Joana Luísa, a namorada, a quem dizia, em carta do início de Agosto de 1944: “A Arrábida ocupa, como sabes, um dos bocados deste meu coração enorme e bem repartido: dizia eu há dias a um amigo, em carta, que ela é para mim como que uma mulher; que é para mim uma presença humana; e tenho saudades dela, se longe, como de uma namorada.” No final do mês, em 29, reafirmava-lhe, em jeito de declaração de amor, em curta frase, plena de emoção: “Tu e a Serra, as minhas duas noivas.” E, no final desse ano, em Dezembro, relatava-lhe um passeio dado na praia do Portinho: “Fui quase até ao fim da praia. E a Serra era uma coisa que não podia dizer-se. Parecia coberta pela cinza, que o Sol aloirava, de um veludo azul. Projecção de mim, a Serra, naquela hora calma e feliz!... E com os olhos nela, cantei a ‘vida’, numa toada que inventei. Eu hoje, se tivesse um piano, tinha composto mais que qualquer Beethoven. Parece que só a música seria hoje expressão conveniente de mim.”

A consolidação desta construção poética em torno da Serra aconteceu sobretudo ao longo do ano de 1945 — foi em Junho que, em nova carta para a namorada descreveu o ambiente matinal que vivia na Arrábida: “A manhã está como um verso. Parece que, sempre que vou sair, a minha Serra — a minha Amante, e minha Mãe, e minha Irmã, e minha Senhora, se veste do mais bonito, arrulha mais com a boca do Vento e com a boca do Mar, para me deter ou para começarem ainda nela as minhas saudades.” E, no mês seguinte, em 23 de Julho, nova carta saía do Portinho, dirigida a Matilde Rosa Araújo (1921-2010), a contar o diálogo com a Serra: “Espero, no entanto, que este Luar magnífico (que eu te não conto por compaixão) me faça bem. Dá-me cabo dos nervos estar para aqui mudo, quando todas as coisas falam pelos cotovelos aqui na Serra.”

O ano de 1945 traria, contudo, uma contrariedade à vida da Arrábida: em Agosto, um incêndio castigou o Monte Abraão e parte da serra próximo do Convento. O poeta azeitonense sentiu a dor com muita violência, como se fica a saber pela carta que, em 26 de Agosto, dirigiu à amiga Maria de Jesus Barroso (1925-2015): “Estou-te escrevendo, com a alma cortada... Deves ter sabido do incêndio que anda a chagar a minha Serra — a minha outra Mãe. Cada queimadura ressente-se em mim. Se eu tivesse a lágrima pronta a todas as chamadas, ontem teria chorado (...). Agora tenho os braços arranhados, a roupa cheira a carvão, porque em vez de chorar peguei numa pá e durante duas horas e meia fui bombeiro. Espero que a Vida tenha dó da Serra e de mim — e faça rebentar de novo as matas. Mas até lá, estou como à cabeceira de um doente muito querido.”

O louvor poético da Arrábida, naquela que foi a primeira obra de Sebastião da Gama, estava para breve, uma forma de declarar tudo o que com a Serra aprendera, tudo o que com ela descobrira.

Foto: "Serra-Mãe" - pintura do grupo Synapsis, em Abril de 2016

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1656, 2025-12-03, pg. 10.


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