quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Ruben A.: liberdade no pensamento e na escrita


 

“Para os que quiserem dados objectivos de catalogação, informo que nasci no dia 26 de Maio de 1920, na Praça do Rio de Janeiro, número 25, 1º andar, em quarto que dá para o jardim chamado do Príncipe Real e que tem por lá a árvore mais extraordinária da cidade de Lisboa. Até essa altura eu era propriedade de minha Mãe.” O aviso consta na abertura do primeiro volume de O mundo à minha procura (1964), de Ruben A., nome literário de Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975), obra que teve mais dois volumes (1966 e 1968).

A escrita autobiográfica é uma das partes significativas da bibliografia de Ruben A. - Páginas (seis volumes, entre 1949 e 1970) e Um adeus aos deuses (1963) são os restantes títulos, todos com uma escrita vertiginosa, alheia a escolas, única, ao ritmo dos acontecimentos, que alia a cultura, a alegria, o gosto e as histórias intensas de uma vida, contada desde a infância, num misto de memórias, diário, relato de viagens, ironia, literatura, reflexão, inovação - “Escrevo por uma necessidade vital, biológica, fisiológica, anti-séptica, antibiótica.” (Páginas, VI).

Esta intensidade trouxe-lhe amarguras logo no segundo volume de Páginas (1950): lido por Salazar, Ruben A. foi levado a abandonar o leitorado no King’s College e iniciar uma peregrinação difícil, mas sem que o entusiasmo o abandonasse. A escrita, essa, prosseguiria - “um tipo como eu sem caneta é como missa sem padre” (Páginas, III, 1956).

Ao longo dos dez volumes, surge também o retrato social do seu tempo nos mais variados planos. Apreciador do belo em todas as áreas, defende que “a classe de uma pessoa provém 75 por cento da boa educação, 20 por cento da cultura e os outros cinco por cento distribuídos por vários factores mais ou menos racionais” (Páginas, IV, 1960), apontando referências - “Classe: existir no mundo um museu onde só é permitido tocar Bach e Beethoven” (Páginas, I); também Inês de Castro, “a mulher com mais categoria na nossa pátria de pouca história de mulheres para contar” (O mundo à minha procura, II). Em oposição, cria uma personagem como o Dr. Barbosa e Costa, que passa aqui e ali, “a figura mais notável da minha imagística pessoal” (Páginas, VI), para justificar, talvez, que “raras vezes os títulos, os cargos, ou os canudos mudam a coluna dorsal instalada no esqueleto do indivíduo” (O mundo à minha procura, III).

O ideal estético levou-o à Grécia (com esfuziante relato em Um adeus aos deuses), onde visitou nu o Museu Nacional de Atenas - “disse ao director que para ver bem o museu tinha de me despir (...). Meus Deuses, foi a primeira vez que vi as estátuas contentes”. Assim exprimia o desejo “total, absoluto, de penetrar naquele mundo” das esculturas helénicas, autenticidade também experimentada quando, em Epidauro, teve necessidade de ler Ésquilo em voz alta no teatro, surpreendendo os outros visitantes.

A construção da liberdade passa por vivências como a república coimbrã “Babaouo”, a viagem num táxi londrino de 1933 (o “Lord Snob”) de Inglaterra até Carreço, a distinção acutilante entre o Ruben A. e o Ruben B., a invenção de palavras, um mundo em que cada vez se vê “menos teórico nas coisas da vida”.

Miguel Torga, que lhe foi próximo, classificou a escrita de Ruben A., quando soube do seu falecimento, como “a singularidade de um estilo desabusado, emblematicamente vivido” (Diário, XII), traços que devem determinar a sua leitura e o apreço do leitor de hoje.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 528, 2020-12-16, p. 2.

 

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