quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço e o conhecimento dos Portugueses


Em 2002, Fernando Pinto do Amaral, ao pensar a exposição “100 Livros Portugueses do Século XX”, integrou na lista O Labirinto da Saudade - Psicanálise mítica do destino português, de Eduardo Lourenço (1923-2020), de 1978, conjunto de ensaios forte no convite à reflexão sobre nós, portugueses, sobre a nossa identidade, ainda hoje obra fundamental.

A ordem por que estão ordenados os nove ensaios, escritos entre 1968 e 1978, não obedece à cronologia: o primeiro texto do livro é o de produção mais recente (“Primavera de 78”) e o último é o mais antigo (Abril de 1968), ambos relacionados com a psicanálise de Portugal, chave do conhecimento que pode ser um “abre-te Sésamo” para a entrada no mundo lourenciano.

“Repensar Portugal” (1978), o segundo ensaio, contém um desafio e uma verificação – “o português médio conhece mal a sua terra - inclusive aquela que habita e tem por sua em sentido próprio - é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de ‘viver’mais a sua existência do que ‘compreendê-la’”. “Repensar” aparece como redefinição necessária para a autognose portuguesa, sobretudo depois do abalo da mudança de regime, de espaços e de práticas devido ao 25 de Abril. A imagem conseguida dos portugueses fora mais cáustica em “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” (1976), apontando a ostentação crescente, no domínio individual ou público.

O mito do “português-emigrante”, que o 10 de Junho explorou, surge em “A Emigração como Mito e os Mitos da Emigração” (1977), construção de uma outra imagem do português associada a Camões, nome que ocorre ainda em “A Imagem Teofiliana de Camões” e “Camões no Presente”, ambos de 1972. Durante o século XIX, Camões foi pretexto para a imagem de Portugal dentro e fora do país, haja em vista a utilização que dele foi feita pelos românticos, vincando-se a questão das imagens do poeta que conferiu a Portugal existência épica, com uma epopeia sobre assunto histórico, a única que da literatura portuguesa passou para o cânone universal, mas acautelando-se Eduardo Lourenço quanto às imagens criadas em torno de Camões.

O domínio da literatura evidencia-se em “Sérgio como Mito Cultural” e “Da Literatura como Interpretação de Portugal”. No primeiro, de 1969, questiona-se o ensaísmo de Sérgio, oscilando entre o seu espírito de polemista e uma “retórica da dúvida” que o caracterizará. De 1975 é o segundo, cujo título expõe o laboratório lourenciano, adepto de uma visão da literatura como forma de descoberta da identidade, num percurso desde Garrett.

Quanto aos dois restantes ensaios, separados entre eles por uma década, em “Psicanálise de Portugal”, de 1968, a propósito da obra Diálogo em Setembro, de Fernando Namora, ressalta a relação dos portugueses com o estrangeiro, mostrando uma tentativa de definição de Portugal obtida por espelho, em que pesam as abundâncias dos outros, isto é, do estrangeiro. A necessidade da viagem surge para o confronto com o que somos, sendo “o encontro com os outros o verdadeiro encontro connosco”. O primeiro texto do livro, de 1978, “Psicanálise Mítica do Destino Português”, constitui viagem pela imagem dos Portugueses, que só foi questionada no seu interior quando já corria o século XIX, manteve um percurso que até 1978 teve curta imaginação e foi marcada pelos traumas advenientes de momentos históricos. Quando o texto termina, deixa uma questão: “Para quando a nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmos e Portugal connosco?”, forma que poderia ser de concluir este livro se a ordem fosse diferente da que lhe ordena o índice... Foi essa viagem que Eduardo Lourenço fez e nos ensinou a fazer!

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 519, 2020-12-02, pg. 9.


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