terça-feira, 20 de março de 2012

N'«O Setubalense» de ontem - Memórias de uma guerra longínqua (ou talvez não)

Durante quase um mês, entre 14 de Janeiro e 11 de Fevereiro, teve a Biblioteca Municipal de Palmela uma exposição bibliográfica consagrada às memórias portuguesas da Grande Guerra, em torno de cerca de oitenta títulos, mostrados entre o memorialismo português do conflito de 1914-1918 e algumas recriações literárias sobre as trincheiras, quer da literatura portuguesa, quer de literaturas estrangeiras. Paralelamente, ocorreram duas conferências sobre o tema, uma na perspectiva da literatura de ficção, outra seguindo o ponto de vista da historiografia.
Na primeira, a conversa esteve a cargo de Sérgio Luís de Carvalho, escritor, autor do romance O destino do capitão Blanc, obra de 2009, uma das boas obras escritas em português, ficcionando esse tempo das trincheiras. A sessão abundou em informação ilustrada sobre a participação portuguesa na Grande Guerra e entrou por pormenores da construção do romance, ao jeito das “pequenas histórias” que vão ajudando um autor a cimentar uma narrativa.
A segunda sessão, orientada por Ernesto Castro Leal, da Faculdade de Letras de Lisboa, intitulou-se “Pátria e República: Memorialismo de Guerra nas edições da Renascença Portuguesa”. Acentuado foi o papel da memória e o pretexto da participação na Grande Guerra como bandeira de afirmação, bem como a carga simbólica em torno da intervenção de Portugal. Mas a palestra de Castro Leal, conduzida por uma leitura cuidada do melhor e mais significativo memorialismo português da época, teve ainda a vantagem de chamar a atenção para vários aspectos: para a propagação de mitos que se vão arrastando na história de um povo (o de Portugal ter sido o primeiro país a abolir a pena de morte é um deles, uma vez que tal abolição foi acontecendo, mas durou cerca de 70 anos até que ocorresse o último fuzilamento debaixo de responsabilidade portuguesa, em Setembro de 1917, na Flandres, no Corpo Expedicionário Português); para o facto de, recorrentemente, nos confrontarmos com o princípio de que Portugal não estava preparado para a guerra, cabendo saber se algum país estaria preparado para tal naquela altura (como estaria algum dos intervenientes preparado se, no início, os estrategas e os políticos pensavam que ela acabaria antes do Natal de 1914, quando acabou antes do Natal, mas de 1918?); para a necessidade de, aquando do centenário da Grande Guerra (a ter início dentro de dois anos), a participação portuguesa ser mais divulgada e conhecida, por justiça com a memória, iniciativa que deverá ter também marcas locais, uma vez que não terá havido concelho que não tenha perdido alguns dos seus filhos no conflito (recorde-se, a propósito, que de Setúbal saíram tropas para a Flandres e que houve o monumento aos mortos da Grande Guerra em 1931 exactamente na mesma data em que, em Lisboa, era inaugurada semelhante evocação); para o facto de Portugal ter tido a situação curiosa de dois soldados desconhecidos, um dos campos da Europa, outro das batalhas em África (efectivamente, Portugal esteve na guerra em dois cenários de operações – na África, em defesa das colónias, desde início do conflito, e na Flandres, como aliado da França, desde Janeiro de 1917 – passaram há poucos dias os 95 anos do embarque do primeiro contingente português rumo a Brest).
A questão da memória portuguesa da Grande Guerra é caso a ser estudado. Como se compreende que tenha havido algum memorialismo publicado até aos anos 30 do século passado, mas, depois, se tenha ficado pelas evocações esporádicas? Provavelmente pelo facto de ter havido a Guerra Mundial de 1939-1945 sem a participação de Portugal e a memória do que se passara duas décadas antes ter sido ultrapassada; provavelmente porque a guerra colonial nos trouxe o convívio com o sofrimento; provavelmente porque a catarse é sempre difícil; provavelmente porque…
Em França, em Novembro de 1998, quando passavam 80 anos sobre o armistício que pôs fim à Grande Guerra e quando se estava num tempo finissecular, num inquérito conduzido pelo jornal “Le Monde” e pela “France 3” sobre os dez acontecimentos marcantes do século XX, a guerra de 14-18 ficou em quarto lugar, depois da 2ª guerra mundial, do Maio de 68 e da queda do regime soviético e antes da construção europeia, da descolonização, do choque petrolífero dos anos 70, da crise de 1929, da revolução russa de 1917 e da revolução islâmica iraniana. Mais: na faixa etária dos 15-19 anos, a Grande Guerra foi o segundo acontecimento lembrado.
Surpreendente? Talvez não. Não terá havido família francesa que não tenha perdido um parente no conflito de 14-18, é certo (a França teve 76% de baixas entre os seus oito milhões e meio de mobilizados). Mas também ajuda muito o facto de um respeito intenso pela memória. E esse é um dever de cidadania, sobretudo para se poder fazer frente a políticas ou a épocas que pretendem esquecer os ensinamentos da história.
Os dados do sofrimento português na Grande Guerra não devem ser desprezados, sejam eles vistos no contexto do envolvimento geral, sejam no de Portugal apenas. Proporcionalmente, Portugal teve mais baixas do que exércitos como o do Império Britânico, dos Estados Unidos, do Japão, da Bélgica, da Grécia, da Turquia ou da Bulgária, analisando cada um individualmente. Os números das nossas baixas cifram-se em 38012, correspondendo a 36% dos mobilizados – 7760 mortos, 16607 feridos, 13645 prisioneiros e desaparecidos. Vale a pena que a memória se preocupe com estes números e com a intervenção portuguesa, porque, como Luis Sepúlveda escreveu, “os povos que não conhecem a fundo a sua História caem facilmente na mão de vigaristas, de falsos profetas e voltam a cometer os mesmos erros”. Independentemente do lado da trincheira em que nos encontremos…

1 comentário:

odilia.gontardo disse...

Boa iniciativa e boa análise.
Venham mais...
Odília