sábado, 8 de maio de 2010

Natércia Fraga, "Asas do Desassossego"

Para que nos serve o desassossego? “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.” Quem assim se justificou foi Bernardo Soares, um dos actores da criação pessoana, num dos excertos do seu Livro do Desassossego. Esta escrita do desassossego passa por uma justificação para vencer a indiferença ou o vazio, para agarrar a vida e construir a biografia, porque, como escreveu Fernando Gandra, só o conformista vive “tranquilo, banalizado”, a ocupar uma “biografia de que não é protagonista, a troco da calma certeza da sua estabilidade” (O sossego como problema, 2008).
Estes considerandos levam-nos a Asas do Desassossego, conjunto de poemas de Natércia Fraga (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2010), por onde passam fragmentos de vida e de tempo, onde a poesia reflecte a tal “febre de sentir” de que falava Pessoa e onde um eu se constrói a partir das inconstâncias e dos momentos, assumindo o seu retrato feito de tempos e de palavras.
Cinquenta e três poemas surgem agrupados em sete partes, que recebem os títulos “Da Amizade”, “Do Amor”, “De Macau”, “Do Mar”, “De Outros Cânticos”, “Da Solidão” e “Dos Sonhos e das Memórias”. Do conjunto de poemas, cinquenta e dois são datados, pormenor que não pode ser minimizado por causa da relação do poeta com o tempo. Será apenas uma questão numérica e de curiosidade esta dos números, mas, mesmo que não tenha sido intencional, uma organização que passa por estes números não pode deixar de indiciar uma ligação ao tempo (a quantidade de dias da semana – sete partes – ou a das semanas de um ano – o total de poemas), sobretudo porque o tempo determina os poemas, haja em vista que apenas um não é datado (e este servirá para dizer que o eu constrói o seu tempo, na medida em que um poema a mais desconstrói a identificação do número de poemas com a referência das semanas), e porque o próprio tempo é motivação de escrita – “Do tempo vivo num tempo / Que não é o dos relógios / Nem aquele que se conta”, ou, por outras palavras, é o tempo aquele que eu faço, que construo no meu desassossego, marcado por mim ou por aquilo que me marcou, como é dito no final do texto “Do Tempo, poema a Camões”: “Do meu tempo (…) / Sei apenas sabores, odores, tactos, / Sentimentos, pensamentos, / Que forram a transitoriedade do / Tempo mortal e finito / E o fazem sentir vago, etéreo, transcendente…” E lá se justifica o poema sem data, elemento necessário para desfazer a ordem e os números do tempo…
É esta marcação individual do tempo que permite o manuseamento do próprio tempo dos poemas e que eles nem sempre sejam apresentados por ordem cronológica, quase respeitada dentro de cada grupo, mas que em cada grupo recomeça.
Abrangendo um período que se desenrola entre Outubro de 1979 e Agosto de 2008, estes poemas vão marcando também um percurso autobiográfico, como podemos ver através de alguns indicadores que se sobrepõem ao percurso da autora: pelas entradas das dedicatórias (a amigos, a familiares); por um pendor memorialístico presente em alguns dos textos (recuos ao tempo da infância, com memórias à mistura, invocando tempos com o pai, a mãe ou com os avós); pelas referências a uma geografia de vida (que passa pelas ilhas, por Macau, pelo Sado e pela “Serra-Mãe”); pela existência de um grupo dedicado à temática da solidão, cenário indispensável para o encontro do eu consigo, no seu espelho, em busca da sua singularidade, como é visível quando justifica esse mesmo tempo de solidão – “É o preço que pago por ser singular / E conversamos demoradamente / Silenciosamente / Sem rancor nem dor / Como personagens que se desdobram…”; finalmente, pelo próprio texto seleccionado para fechar o livro, em jeito de auto-retrato, que é também assinatura e que novamente insiste no papel que o tempo desempenha: “Sou assim uma espécie de vagabunda / Que se encontra onde os outros se perdem / Vagueando por tempos inexistentes / Todavia tão claros e luminosos / Como fogo de artifício / Desenhado em mil formas e mil cores / Valsando nos espaços siderais…”
Imagens fortes nesta poesia de Natércia Fraga são ainda as que resultam de símbolos como a água – fonte geradora no espaço uterino ou força indomável que abraça a ilha ou emergência da paixão (“venho de noivar com o Mar…”); a ilha – na sua inconstância, oscilando entre a presença e a ausência, o longe e o perto, com a imponência descrita por escarpas e pintada por magma, rochas e flores; o entardecer e a noite – momentos que permitem ao eu entrar dentro do tempo, acordando “adormecidos sons e langorosas tristezas / De trazer por casa”; a infância – tempo de imaginações aconchegadas (“adormecia, sonhando com marés, céus, viagens, / fantasias…”); o amor – nas suas vestes de paixão, frequentemente associado à brevidade e à Natureza, deixando registo em poema feito tela.
Asas do Desassossego surge, assim, para assinalar o equilíbrio do eu, que rejeita a passividade e o sossego. É com um olhar inconformado que são pintados os “Velhos no Jardim”: “O tempo cai gota a gota / Sobre as suas vidas gastas / Sem que nada os espere / Senão as sombras do jardim / Onde tentam ludibriar a morte / Nos baralhos com que jogam / As cartas / Dos dias.” Em Asas do Desassossego, o eu constrói-se pelas memórias constantes, perdendo-se “nos interstícios do tempo” e valorizando espaços “quase inexistentes / (…) / desenhados nas paisagens interiores”, num fulgor em que se diz a própria vida e em que se passeia pelo tempo, algo que é intrínseco ao próprio poeta.
[Na apresentação do livro, hoje, na Biblioteca Pública Municipal de Setúbal]

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