sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"O destino do Capitão Blanc", de Sérgio Luís de Carvalho



Quando lemos O destino do Capitão Blanc, de Sérgio Luís de Carvalho (Lisboa: Planeta, 2009), ficamos de imediato marcados por essa palavra “destino”, que nos é cara na tradição literária portuguesa; depois, podemos associar a ideia ao subtítulo que o livro apresenta – “A missão e a paixão de um militar português na Primeira Guerra Mundial” – e o puzzle começa a compor-se.

Neste romance, o leitor acompanha cerca de quatro meses da vida da personagem Luís Blanc (se exceptuarmos as indicações sobre o seu passado, dadas por analepse), ocorridos entre o início de Agosto e o final de Novembro de 1918, em torno de uma missão para que o militar foi destacado na Flandres (e que lhe decidiu o destino), onde o Corpo Expedicionário Português (CEP) participava na guerra de trincheiras.
É curioso que o sentido de missão, bem como a história desta personagem, se vão alicerçar sobre o momento em que o CEP já perdera alguma da sua identidade. Porém, o facto de sabermos que a história desta guerra já se aproximava do final confere a este romance também a possibilidade de se fazer a leitura de uma história que se vai construindo sobre ruínas, marcada por uma verosimilhança caucionada ora pelos encontros que podemos fazer com o que da literatura memorialística da participação portuguesa na Grande Guerra ficou, ora pelo roteiro geográfico que a personagem percorre e pelas figuras (Tamagnini e Hélder Ribeiro, por exemplo) e momentos históricos com que se cruza (as notas bibliográfica e cronológica, que constam no final, asseguram essa ligação entre a ficção e a realidade).
O destino realiza-se nesta história com um à-vontade assinalável, encarregando-se de construir um final para cada personagem, seja para o inimigo antigo ou para o pai de Blanc, seja para a enigmática Emma, seja para o próprio Blanc. É um romance de desgosto e de decepção, com um final difícil de prever, mesmo na história de amor em que os apelidos Blanc (dele) e White (dela) pareciam prognosticar um final feliz pela coincidência dos apelidos.
Profundo é o que fica da experiência de guerra. E vale a pena lembrar episódios como o da destruição em Mont Sec, o da associação entre os amotinados e os “cães lazarentos”, o da morte que espera um herói vestido com a “farda principal, cheia de alamares e de dourados, de dragonas e distinções” a pouco mais de uma hora do fim da guerra ou a reflexão sobre o que ficaria do que foi essa (aquela) experiência logo que um filho perguntasse a um dos combatentes algo como “pai, o que é que fizeste na Grande Guerra?”
É o absurdo da guerra. Na sua realização, na participação, nos sentires, nas reflexões sobre a vida. É o absurdo do condicionamento da liberdade, do pensamento e da palavra. Tudo passando neste romance, eivado de ironia, efeito que é muito ajudado pelos comentários entre parênteses que entremeiam alguns parágrafos, ora como extensões do narrador ou das personagens, ora suscitando no leitor a vontade de acompanhar a reflexão.
A literatura portuguesa do século XXI contribuiu já com alguns bons títulos de ficção que tomaram como tempo e como cenário a participação portuguesa na Grande Guerra. O destino do Capitão Blanc, de Sérgio Luís de Carvalho, é um deles, que vem integrar esse rol em que já constavam obras como A filha do Capitão (de José Rodrigues dos Santos, 2004) e Memória das estrelas sem brilho (de José Leon Machado, 2008).

Sublinhados (por ordem de entrada na obra)
“Um campo de batalha não é um bom sítio para termos atrás de nós alguém que queira saldar contas antigas.”
“Ninguém olha para trás quando sai de uma trincheira para a retaguarda porque não lhe sente a falta, mas ninguém olha para trás quando sai de uma trincheira avançando para um ataque porque lhe sente a falta em demasia.”
“A busca ansiosa de heróis é timbre das grandes derrocadas.”
“Por mais teso que um gajo seja é sempre na mãe que fala quando está mesmo a morrer.”
“Os ratos são dos poucos a tirar bom partido desta guerra, para além dos banqueiros, dos empresários, dos piolhos, dos políticos oportunistas e dos fabricantes de armamentos, claro está.”
“O mundo tem, de quando em vez, umas surpresas que quebram o curso ordenado das coisas esperadas.”
“Estas coisas das revoltas são, como se sabe, muito contagiosas, sobretudo se há razões de sobra para isso.”
“Até o cão mais pacato se farta dos maus tratos.”
“É de lendas que se faz a fama de homens e de bichos.”
“As más notícias são sempre intemporais.”
“O melhor é viver um dia de cada vez. Aprende-se isso depressa, numa guerra…”
“Convém ter medo… Foram homens sem medo que conduziram o mundo a esta loucura… As pessoas decentes e sensatas, essas, costumam ter medo.”
“Pode-se acusar a morte de muita coisa, mas não de ser inesperada; está lá sempre, nós é que passamos o tempo a esquecer isso.”
“Um tipo tem de se defender de desilusões, senão damos em doidos.”
“Por vezes, a realidade é uma coisa muito inconveniente.”
“As coisas têm o seu tempo. Depois passam. Tudo passa.”
“Traição ou glória são coisas bastante relativas.”
“Esta guerra faz-nos pensar em tanta coisa, faz-nos tantos amargos de boca, que creio bem que dela nem os vivos sairão sobreviventes.”
“Em guerra, tal como durante a noite, uma pessoa faz coisas e diz coisas que não faria nem diria em tempo de paz ou à luz do dia. É a noite. E é a guerra. Estas duas coisas são muito manhosas.”
“As coisas, mesmo as do passado, sabem-se sempre.”
“Os rancores e as raivas acumuladas mais não são que merdices que nos encaganitam a vida e de que a morte se ri como uma alarve.”
“Mesmo assobiado e mesmo desafinado, hino nacional é hino nacional e com os pátrios brios nunca se brinca.”
“A verdade é uma coisa dura de se ouvir e, por vezes, muito pouco conveniente.”
“Ao menos a terra e a guerra não nos pregam mentiras. São o que são e mais nada. Para o mal e para o bem, a gente sabe com o que pode contar.”

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