quinta-feira, 28 de agosto de 2025

António Gamito Chaínho: Um romance na Comporta



Quando Henry Palmer, na sua mansão em Gorey, recebeu missiva da empresa a convidá-lo para assumir a administração da Herdade da Comporta, não se espantou — era, afinal, o reconhecimento, depois de ter passado por várias partes do mundo a servir a organização, como acontecera no Quénia e no Brasil. É sobre esta aceitação e consequente nomeação que assenta o primeiro capítulo do romance A Papoila dos Arrozais (jornal Ecos de Grândola, 2025), de António Gamito Chaínho (n. 1950).

A acção corre na década de 1960, sem que seja apontada uma data específica, mas com indicações epocais como a da utilização de um Peugeot 403 (modelo de viatura que teve franca adesão no início dessa década), a referência à guerra colonial na Guiné (onde a luta armada existiu desde o início de 1963), a menção da falta de estrada entre Alcácer e a Comporta ou a informação, lá mais para o final da narrativa, de que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, fora inaugurada havia pouco tempo (o que aconteceu em 1966).

A história da chegada do novo administrador constitui um forte pretexto para o leitor, seguindo a personagem e o seu feitor, ir descobrindo como era o território da Comporta ou como eram as vivências dos naturais e dos trabalhadores temporários, para ir assistindo a cenas como a da matança do porco ou a chegada dos vendedores ambulantes à aldeia, para relembrar o papel das bibliotecas itinerantes e, sobretudo, para conhecer as fases e agruras no cultivo do arroz. Nas deslocações que Henry efectuava com o seu feitor, o fascínio pela herdade comovia-o, pois ela parecia “um mosaico de pequenas povoações ao longo das encostas abrigadas e sempre próximas de água”; por outro lado, Henry era sensível para a necessidade de introduzir melhoramentos locais, quer do ponto de vista tecnológico para o tratamento do arroz, quer do ponto de vista comunitário. Com Olivia, a mulher do administrador, o leitor assiste ao fomento do pacto social, intervindo ela em aspectos que pudessem melhorar as condições de vida, como a valorização da educação, para o que dialogou com as professoras da região no sentido de modernizar a escola e as práticas pedagógicas, ou como a valorização de competências das pessoas.

A narrativa desemboca numa história de amor, à primeira vista uma relação difícil por causa da estratificação social, mas com um final feliz, entre Beatriz, “a rapariga mais bela de entre todas as que trabalhavam nos arrozais”, conhecida como “Papoila”, e John, filho dos ingleses, na altura em que veio passar uma temporada à herdade com os pais. Ela, uma rapariga cheia de capacidades artísticas, leitora (não perdia as visitas da biblioteca itinerante), e ele, impressionado desde que a olhou, constroem uma história de aproximação, vencendo as distâncias sociais e a língua afiada de algumas vizinhas, constituindo também um pretexto para o envolvimento entre a administração da herdade e a população local, uma viagem de aproximação e de construção comunitária.

A história tem uma construção linear e fácil, com agradável tratamento das personagens. Contudo, esta obra mereceria algum cuidado de revisão em dois aspectos: por vezes, em algumas construções em que discurso directo dos intervenientes e discurso do narrador se colam devido à pontuação utilizada; por outro lado, numa situação de anacronismo, verificada quando, no início da relação de Beatriz com Olivia, a jovem menciona títulos de várias obras que lera e de que gostava, referindo, entre outras, O Delfim, de Cardoso Pires, e O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Saramago, que nunca poderiam ser referências, pois ambas são de publicação posterior ao tempo em que a história ocorre (de 1968 e de 1984, respectivamente), e ainda, numa situação de lapso, no momento em que Beatriz diz gostar de poesia e cita o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, atribuindo-o a Florbela Espanca.

Valorize-se, na construção de A Papoila dos Arrozais, a preocupação que o autor teve na procura de “detalhes do quotidiano local”, aprendizagem que, no início do livro, agradece a vários informadores que com ele partilharam o seu conhecimento, o que permite assinalar também um cunho histórico-etnográfico que embala esta história, de onde não estão arredios também momentos de reflexão, nos diálogos, sobre aspectos como a vida e a morte, a paixão e a inveja ou a sedução e o riso, questões que passam também pelo discurso e pelos pensamentos das personagens que animam esta narrativa.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1587, 2025-08-27, pg. 10.

 

Sem comentários: