sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Os panoramas que Cabral Adão cantou

 


Em 1 de Fevereiro de 1960, a primeira página do jornal O Setubalense publicava um poema assinado por “Medronho da Mata”, cujo tema era a cachoeira da Quinta do Alcube, imagem procurada para o poeta exprimir o seu encanto perante cenário repleto de verdura, assistindo à acção da água corrente e saltitante sobre a pedra, limando-a e polindo-a, imagens de que logo se apropria para exprimir a sua emoção: “Devia ser em mim que tu corresses / E as rochas do meu fel me dissolvesses / Levando tudo, sem deixar um ai!...”

O pseudónimo que assumia o poema, também utilizado na página “Arte - Alegria - Beleza” que o jornal publicava de vez em quando, organizada pela Arcádia da Fonte do Anjo, pertencia a Cabral Adão (1910-1992), conhecido médico que chegara a Setúbal, oriundo de Vila Flor, em 1938. O poema sobre a cachoeira foi o primeiro de uma série intitulada “Panorâmica”, que alojou 21 sonetos ao longo de 1960, até à publicação do último na edição de 31 de Dezembro desse ano, tempo importante para Setúbal, pois passava o primeiro centenário da sua elevação a cidade.

O panorama que se ofereceu como pretexto a Cabral Adão passou por locais e momentos importantes, cantando espaços (ruínas dos Capuchos, quintas dos Ciprestes e da Laje, Senhora do Cais, miradouro de S. Sebastião, mata do Vidal e Albarquel), figuras (descarregador de peixe, vendedora de laranjas e varina das Fontainhas), momentos (luar no Sado, campina vista no Outono e anoitecer sobre a cidade) ou paisagens (vista desde S. Luís, marinhas e praia “do Dr. Adão”, assim conhecida e onde constam os versos que, hoje, em lápide sobre rocha, podemos ver na estrada a caminho da Figueirinha).

Ao longo dos vários momentos ou locais evocados, há imagens fortes pelo efeito sensorial e artístico, vibrantes no retrato do descarregador (“uma iluminura que se antolha / digna de um óleo ou mármore render”), na aguarela das marinhas (“tabuleiros d’água a branquejar”), no efeito de espelho vindo do rio (o “sol vem bater no tafetá do Sado”) ou na paisagem sonora do bulício da urbe (“a serra, na distância, põe-se à escuta / desta cidade inteira que labuta”). A voz lírica destas “panorâmicas” circula em busca de afinidades e o leitor não se surpreende no momento em que o poeta entra pela mata, espaço procurado “nas horas de tristeza ou de aventura”, cruzando-se com a inspiração suscitada pela Natureza e com as vozes de quem na serra o antecedeu na escolha da Arrábida para tema do seu canto: “Mas só me vem um eco, em melodia. / — És tu, Sebastião?... E ele aparece / Sob o capuz fraterno de Agostinho.”

Três anos depois destas publicações em O Setubalense, em 1963, Cabral Adão assinalava o quarto de século sobre a sua chegada a Setúbal e a melhor forma que encontrou para manifestar o seu apego a este torrão foi através da edição de Panorâmica - Poemas a Setúbal, reunião desse conjunto de sonetos, antecedidos de curta nota em que em que o autor revela ter a chegada ao Sul refinado “o pendor inato de enamorar-se da Natureza” e ser Setúbal “a segunda almofada de recostar a cabeça”, assim como de um poema com uma dúzia de quadras intitulado “Rio Azul”, em jeito de introdução e de justificação: “Não há um rio na minha terra!... / Só a três léguas, pra cada lado. / Mas eis que a vida aqui me desterra / Pra me dar um - o meu terno Sado.” Nesta abertura, é cantada a paisagem e a alegria de a poder contemplar, confessando que raramente se ausenta ou afasta do rio, dizendo-se com “mais sorte do que Feijó”, alusão ao escritor limiano que, em consequência da sua vida profissional, viveu longe do pátrio Lima.

Panorâmica - Poemas a Setúbal teve segunda edição em 1988, ano em que passava o cinquentenário sobre a chegada de Cabral Adão à cidade do “Rio Azul”. Aos poemas da primeira edição acrescia um, no final, o vigésimo-segundo, reflexão autobiográfica em que se junta o efeito do tempo, o passar da vida, a família (já em terceira geração) e a adopção de Setúbal como espaço-natal repartido: “Subtis, sem um aviso, de mansinho, / Rodam os anos sem se dar por isso: / É o sol que mal anda o seu caminho / E, sem se perceber, leva sumiço. // Já são cinquenta os anos que, submisso, / Eu tenho de Setúbal, fofo ninho / De cinco filhos meus, flores de viço / A rescender a mar e rosmaninho. // Desses cinco, já onze refloriram / Geração estendida a muita parte, / O Rio Azul levando gota a gota... // E já que eu vim de longe nesta rota, / Meu meio berço seja, pela arte / Que os meus olhos sagazes jamais viram!”. A panorâmica deixava de ter como motivo o exterior e tornava-se dominada pelo percurso de vida...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1473, 2025-02-19, pg. 10.

 

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