Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.
Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.
A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.
As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.
Sem comentários:
Enviar um comentário