quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Luís Osório e Sobrinho Simões: Uma conversa para semear

 


Em mais de centena e meia de páginas, a conversa flui e passeia por assuntos diversos, reflectindo e partilhando. A dada altura, fala-se de semear. “Nestes últimos anos, fui abandonando as tarefas mais políticas, mais de administração e gestão, a minha medida passou a fazer-se de recompensas imediatas e afetivas, é isso que verdadeiramente hoje me interessa. Já não semeio.” E insiste o que entrevista: “Está a semear nesta conversa.” E responde o primeiro: “Vamos ver, espero que sim, que possa ser uma boa sementeira.” Quem se deixa entrevistar é o anatomopatologista Sobrinho Simões (n. 1947) e quem pergunta é Luís Osório (n. 1971), diálogo publicado sob o título A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões (Contraponto, 2024).

Foram vários os encontros entre os dois conversadores e em diversos pontos, no Porto ou em Évora, em casa, no hospital ou no bar de um hotel, sempre para alimentar um testemunho de vida, que ficou organizado em seis partes, todas intituladas com um substantivo que abre portas para os rumos desses momentos, num itinerário entre o público e o privado — “provocador”, “aluno”, “professor”, “médico”, “político” e “homem de família”.

O diálogo é sereno, falam de (quase) tudo, numa postura de balanço seguro pela experiência de vida, sem a preocupação de esconder o tom familiar e de proximidade por vezes ou o pensamento sobre coisas mais sérias, algumas sem resposta, mostrando convicções, experiência, reflexão, fragilidades próprias, medos, importância dos outros e (algumas) certezas.

Em certos momentos não está arredio o poder irónico, como quando se fala do sentido da curiosidade — “O português só pergunta quando já sabe a resposta. Quando não a sabe, cala-se. Não somos genericamente capazes de semear, não temos atos que não sejam de interesse imediato.” Ou quando se fala de obrigações: “Somos péssimos no compromisso. (...) Somos mestres a resolver catástrofes, mas deficientes a preveni-las.” O retrato, porém, não é negativo em absoluto: “Somos uma data de coisas boas também, algumas que nos fazem únicos. (...) Generosidade. Somos extraordinariamente generosos.”

Necessariamente, nestes encontros teria de vir a questão do médico e da saúde (ou da sua falta), na forma como cada um de nós vê e sente estas realidades. Sobre o médico: “Na medicina tradicional, o médico é alguém que ajuda o outro, que sabe olhar o outro, que sabe ler nos olhos e tocar no corpo. Quem apenas sabe tudo de cor não é necessariamente alguém que compreende a condição humana. (...) Na medicina, mais de 90 por cento do que se faz são coisas de bom senso, de ternura e empatia, quando se é bom, de ter capacidade de perceber o outro, de não fazer burrices, de perguntar se tiver dúvidas. Depois, há 3 ou 4 por cento de coisas sofisticadas em que se joga a vida e a morte numa decisão que obrigatoriamente necessita de inteligência, conhecimento e muita dedicação, estudo e talento.” E sobre a saúde: “Há uma coisa que as pessoas têm de perceber, a saúde é mais importante e muito mais variável do que a doença. A doença é um alisador, os doentes ficam todos parecidos uns com os outros. Pior só se estiver morto.”

Interessantes também são as considerações sobre a família e sobre os amigos, sobre a política, sobre a crise dos comportamentos, sobre o que não se sabe relativamente ao Homem. Uma conversa que se lê com gosto, sem subserviência a conveniências sociais, em que se misturam pacificamente a perspectiva do cientista e do ser humano para quem a imortalidade “é o sonho impossível” e que é objectivo quando diz o que se perde com o envelhecimento: “Perdemos tempo, é a primeira coisa que perdemos.” No leitor, fica ainda a urgência do pensar e do perguntar, formas que são de responder aos desafios, mesmo que sejam da ordem do transcendente, como a questão da fé: “Fascinante tema, civilizacional e estruturante no que somos. Uma matéria que também me faz pensar, sempre fez. Questiono-me muitas vezes sobre a razão que nos leva a acreditar. Por que raio é que a gente acredita? Quem é religioso tem justificações transcendentais, mas para quem não tem?”

Voltando à sementeira: é impossível ficar-se indiferente a este registo, pleno de ensinamentos, ainda que eles obriguem a um contínuo questionar, forma de nos conhecermos a nós e de conhecermos o outro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1393, 2024-10-16, pg. 10.


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