quarta-feira, 3 de abril de 2024

Imagens contra a estupidez



Vinte anos depois de Maria Severa Onofriana, conhecida como “Severa”, ter falecido (quando contava 26 anos, em 1846), um autor dramático seu contemporâneo, Ernesto Biester (1829-1880), defendeu a opinião de produzir uma peça trazendo-a para protagonista. Se houve quem o apoiasse, também existiram aqueles que, à luz da moralidade pública, condenaram a ideia, argumentando, segundo Júlio de Sousa e Costa, que “pôr em cena a vida de uma mulher perdida chamaria o pecado sobre as cabeças do autor, actores, actrizes, ponto, espectadores, toda a gente, enfim, que fosse deliciar-se com as cenas copiadas da Mouraria...” Sousa e Costa relata este episódio na obra Severa, biografia publicada em 1936, rematando com o seguinte comentário: “Toda a vida há-de haver gente estúpida e é isso que faz com que o mundo se torne imensamente divertido.” A verdade foi que os tais defensores moralistas foram fortemente satirizados por causa desse “cuidado” moralista, o que justificou a observação de Sousa e Costa.

Mesmo retirando o comentário do contexto que o originou, o que nele é dito mantém a sua validade. Que o digam as cenas do quotidiano a que vamos assistindo, nos mais diversos circos e palanques, a exigirem que tenhamos nervos de aço ou a nossa gargalhada perante o ridículo... O aflitivo, no panorama, é que a estupidez se sabe afirmar sem nada recear, num jogo de palavras, num esgar de risos e de sobranceria, num gesticular e vociferar com desaforo, numa defesa de ideais em que não dá para acreditar - a geografia dos acontecimentos recentes, viremo-nos para ocidente ou para oriente ou comecemos aqui mais perto, torna evidente a pujança e a matreirice da estupidez.

Eugénio Lisboa, num texto inserido no livro Poemas em tempo de guerra suja (2022), retratou-a em grande tela: “A estupidez é a mercadoria / mais bem distribuída deste mundo: / ela veste-se de demagogia / ou do que quer que seja de imundo. // A estupidez é um grande muro, / que oferece ao inteligente / a resistência do escuro duro, / que se ergue forte e prepotente. // Ela exibe estrelas de general / e ri-se à grande dos que são sábios: / permite-se, à vontade, ser boçal, // saindo barbaridades dos seus lábios. / A estupidez sabe prevalecer / e sabe, sobretudo, não temer.”

E será sempre uma luta inglória o diálogo com a estupidez, mesmo que se invoque a competência democrática ou a pluralidade para tal, pois até valores como a vida parecem insignificantes perante a estupidez. Foi Ruben A. (1920-1975) quem o disse no terceiro volume de O mundo à minha procura (1968): “Para a estupidez, não há argumentos, por mais inteligente que seja o einstein. (...) Um ditado alemão define perfeitamente esta conjuntura: Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” E, num outro passo da mesma obra, relacionou a estupidez com a tragédia: “Falar com um ser estúpido que tem opiniões, este é o drama da existência.”

Há aprendizagens que vamos fazendo nestes percalços que a vida proporciona, chegadas, muitas vezes, depois de percursos longos. Uma das primeiras coisas que ouvi de um amigo de longa data, bem mais velho do que eu, foi a recomendação de não contra-argumentar com a estupidez, porque, no final, é ela quem ganha, não por mérito do que apresenta, mas por sabotagem da realidade, recurso ilusório e atraente para incautos. Numa crónica incluída na obra O país do solidó (2021), J. Rentes de Carvalho, um pensador crítico dos quotidianos, deixa o aviso: “A estupidez é contagiosa e demasiadas vezes é ela quem vence.”

E a conclusão torna-se óbvia: porque não investem os cientistas numa vacina contra a estupidez? O mundo e a vida seriam mais fáceis, mais felizes, menos enganadores, mais de todos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1272, 2024-04-03, pg. 10.


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