quarta-feira, 29 de novembro de 2023

D. Manuel Martins: mensagens para todos os tempos

 


A imprensa foi um dos canais por onde passou a mensagem de D. Manuel Martins (1927-2017), o primeiro bispo de Setúbal, em artigos de opinião curtos, de leitura acessível, abordando causas pertinentes, relacionadas com a forma de ser cristão e de ser cidadão, tal como aconteceu em Setúbal com a sua colaboração nos jornais A Seara (da Fábrica da Igreja de S. Julião) e Notícias de Setúbal (órgão diocesano). Várias dessas crónicas foram reunidas em livro, tendo dado origem a títulos como Pregões de Esperança (em 1997, com nova edição em 2014) e Posso entrar? (2012), ambos recolhendo colaboração nos jornais sadinos, e Nascemos Livres (2018), crónicas vindas a lume no Jornal de Matosinhos.

A palavra do primeiro prelado sadino voltou a ecoar, através de um título como Crescendo com cheiro a Primavera (Paulinas Editora, 2023), conjunto de 52 crónicas originalmente publicadas no mensário Crescendo, jornal paroquial de Santa Cruz do Bispo, entre Fevereiro de 2013 e Setembro de 2017 (mês em que faleceu), num trabalho de recolha devido ao setubalense Eugénio Fonseca (que já em 2020 publicara a obra Testemunho de duas vidas compartilhadas, memória do trabalho e da amizade desenvolvidos com D. Manuel Martins). Estamos perante um livro que ganha também sentido quando D. Américo Aguiar chega à diocese de Setúbal e assume D. Manuel Martins, seu conterrâneo, como referência.

A crónica de Fevereiro de 2013, a primeira, reflecte sobre o sucessor de Bento XVI, que nesse mês apresentara a resignação, e, se bem que elogioso para o seu desempenho, D. Manuel Martins acalentava uma esperança: “que o novo Papa, com todas as experiências acumuladas dos antecessores, tenha, pelo menos, a força de arrumar a sua Casa. Todos vêem que isso se impõe.” No mês seguinte, o regozijo com a escolha saída dos cardeais era notório: “Exultemos de alegria e demos graças ao nosso Deus, porque deu à sua Igreja um novo Papa”. Enquanto leitores, desconfiamos mesmo de que D. Manuel Martins sorria de satisfação - referindo-se a Francisco, aponta várias características que hoje sabemos terem marcado o seu papado: veio de um “continente jovem”, “aparece ao mundo com simplicidade”, “assume o nome de Francisco, do Irmão Universal”, trocou hábitos palacianos por uma vida comum e “conhece o mundo”. Para D. Manuel Martins, era clara a mudança: “Ninguém falava dele como sucessor de Bento XVI, enquanto que dois ou três andavam na boca dos fabricadores de prognósticos. Foi mesmo o Espírito Santo que o tomou pelas mãos e o deu à Igreja.”

Por estas reflexões de D. Manuel passa o valor das palavras e dos gestos de humanidade (o sentido de expressões como “obrigado” ou “desculpa”, por exemplo), circula a ideia de família como referência de proximidade e de aprendizagem (que se pode estender até à ideia de paróquia), é valorizado o património e a paisagem, vinga a ideia de modernidade da Igreja (com as referências a D. António Ferreira Gomes, seu mestre, ao Concílio Vaticano II ou a Paulo VI), são interpretados momentos do calendário litúrgico (os tempos da Quaresma e do Natal, as celebrações dos Fiéis Defuntos ou do Corpo de Deus, as festividades religiosas), é olhado o mundo nos seus cataclismos (atentados na Turquia, a acção do “Brexit”, o terramoto no Nepal), surge uma perspectiva sobre a actualidade em Portugal (reflexões sobre os incêndios ou sobre os interesses daqueles que “se nos propõem governar” nas autárquicas). Se, por um lado, é sempre acalentada uma esperança, há também receios - em Julho de 2017, escrevia: “A vida não vai bem em Portugal. Estabeleceu-se um clima de desordem e de medo (...), preocupa-nos a sorte do país.”

Na sua relação de afecto com Setúbal, D. Manuel Martins relata dois episódios que constituíram aprendizagens para si mesmo: o primeiro, o encontro com o sem-abrigo à entrada da catedral sadina antes de uma celebração natalícia; o segundo, a recusa das irmãs da congregação de Teresa de Calcutá em terem televisão, sofá e frigorífico em casa. Ambos os momentos deixaram o bispo emocionado pelo que simbolizaram na necessidade de despojamento e de autenticidade.

No texto introdutório, João Matias Azevedo, pároco e responsável pelo periódico, testemunha a generosidade do colaborador, um “luzeiro no tempo” que ajudou a “cultivar a autoestima” do próprio jornal. A diversidade dos temas tratados é grande, sempre na linguagem simples e comprometedora que caracterizou D. Manuel, prevalecendo como destinatário das suas mensagens um “nós”, em que ele próprio se integrava.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1197, 2023-11-29, pg. 10


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

José Gardeazabal e a literatura como porquê (2)



A personagem central de A mãe e o crocodilo, de José Gardeazabal, este operário da fábrica de reciclagem, fica. Mas fica transformado, assim como a sua vida. Vai havendo um progressivo apagamento da mãe, no caminho do esquecimento (“esquecer é uma viagem de adeus”), até chegar o seu último momento ou despedida, num tempo em que já não há segredos de família que alimentem Vladimir. Neste caminho, há também a descoberta da identidade do pai e da razão da separação, revelação que coincide com o final de vida da mãe. Há também a despedida do crocodilo, largado num rio que chegará à Alemanha - o animal de companhia silencioso, pesadelo sempre descrito, de presença obrigatória mas alheio, que Vladimir acreditara ter sido trazido por um missionário (mas que a mãe corrigia, dizendo ter sido um mercenário, mais tarde vindo a perceber-se o porquê desta designação antipática), e que, no final do livro, surge anulado - “Ao Benito, nunca mais o vi, desapareceu. Naufragou, afogou-se? O crocodilo pode não ter existido.” A perda desta companhia é ainda responsável pela incerteza de Vladimir no termo da história, oscilando entre a probabilidade de reencontrar Noor e rumar para Paris e o sonho em que se vê impossibilitado de entrar na Alemanha “por coxear da perna esquerda”...

Esta segregação (ou momento impeditivo) colide com a perfeição e com a história dos tempos, com a construção da identidade e com o sentimento de humanidade. Se, por um lado, “os países não passam de variações de uma mesma coisa”, por outro, a Alemanha, o território desejado, significa a diferença, uma distância que não é apresentada como positiva - “A Alemanha devia poupar nas surpresas, algumas das piores surpresas foram alemãs, é da história”. Poderá Vladimir sonhar com um tempo melhor?

No último capítulo, ao olhar os outros, os que com ele trabalharam e que ele foi descobrindo, não nota que o tempo lhes tenha dado melhores condições ou suficientes alterações, antes parecendo que cristalizaram naquilo que já se adivinhava sobre o destino de todos. Nesse mesmo capítulo, uma das derradeiras revelações da mãe mostra-lhe a violência exercida sobre a sociedade a que pertencia a família, numa história que circulava na família, desde a avó de Vladimir: “Os soldados estavam de pé, de cada um dos lados da fila de homens. Tinham já acontecido muitos mortos quando a minha avó viu dois prisioneiros a avançar, sem estrelas ao peito. Toda a gente os viu. (...) Trouxeram dois triângulos cor-de-rosa e penduraram os triângulos ao peito dos homens, mas por pouco tempo, porque os homens iam morrer. Mandaram-nos tirar a roupa e descer para o fundo da vala e eles desceram de mãos dadas e depois morreram. Foram mortos. Warum?” E a passagem deste testemunho pela mãe continua: “O que a tua avó viu nesse dia fê-la prometer não ter um filho. Até ao meu nascimento. Eu nasci menina, sou a tua mãe. Até eu nascer, a tua avó teve a vida prisioneira daqueles dois homens nus a desaparecerem.”

Esta revelação não é absoluta novidade, pois Vladimir crescera a ouvir uma história que se repetia nas gerações. Ainda antes da chegada de Noor, ele reflecte sobre a vida, qualificando-a com um adjetivo forte - “parada”. Uma vida parada, portanto. E, depois, retrospectiva: “Histórias de família. Bisavó: a vida não era fácil em 1942, nem em 1946. Avó: a vida não era fácil em 1968. Mãe: a vida não foi fácil em 1995 nem em 2001. Apesar disso, eu nasci. Ouço isto desde criança. A vida foi sempre difícil, as datas são aproximadas.” A dificuldade repetida, repisada, de geração para geração, e o resultado a ser sempre o mesmo. E rapidamente associamos os tempos de crise (para usar uma palavra eufemística) em que a morte campeou pela Europa (com particular incidência na Europa de Vladimir) e pelo mundo, em que o medo se implantou, em que as incertezas tiveram livre circulação.

Este romance não apresenta nada de ingénuo, como se tem visto. Poderemos ainda falar das remissões sugeridas pelos nomes - Vladimir torna-se evidente, tal como Benito, o crocodilo (para quem ainda chegam a ser sugeridos sobrenomes como Adolfo ou Iosef, também eles plenos de referência) ou o de Lazarus (o patrão da fábrica que chegou a parecer morto e foi salvo por uma refugiada que sabia de enfermagem). Com que linhas se cose a diversidade europeia, que identidade europeia é possível, qual a relação de forças entre aproximações e dissemelhanças, que formas há para que a história não se repita nos seus aspectos mais perniciosos - eis um leque de desafios que por aqui passam, fazendo deste um romance forte nas vias que vai traçando para eventuais descobertas ou reflexões em torno dos quotidianos e das diferenças, dos direitos e do sofrimento. Se a literatura não pode mudar o mundo, pode, pelo menos, pensá-lo e inquietá-lo, porque, como pensa Vladimir na sua última conversa com a mãe, “a vida precisa de porquês”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1192, 2023-11-22, pg. 5.

 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

José Gardeazabal e a literatura como porquê (1)

 

José Gardeazabal, na apresentação de A mãe e o crocodilo,
em Setúbal, na Culsete, em 20 de Outubro (Foto: Raul Reis)

A narrativa que passa neste A mãe e o crocodilo, de José Gardeazabal (Companhia das Letras, 2023), surge de sobreposição de histórias, nem sempre precisas, de associações de ideias que levam a um contínuo questionar (não por acaso, a pergunta “porquê”, em alemão “warum”, vai surgindo ao leitor com frequência), num jogo entre personagens que nem sempre convergem mas que se conhecem, em espaços em que se evidencia a transição histórica - “A minha cidade descansa a um canto da Europa, indecisa entre três países diferentes. Os edifícios públicos já pertenceram a quatro ou cinco nações inimigas. Nem eu nem ninguém fala a língua dos nossos avós. (...) Não somos do Leste, o Leste já não existe, somos do ex-Leste. Somos ex-fascistas e ex-comunistas, por esta ordem, somos a Europa dos ex. Pena não sermos um país surrealista, divertíamo-nos mais. Estamos no meio da Europa, há Europa por toda a parte, não temos saída. Deviam chamar-nos O Meio, O Meio da Europa.”

Com tal definição geográfica, histórica e social, percebe-se a pertinência da questão da identidade, linha maior deste percurso da personagem Vladimir, que busca permanentemente a sua identidade, descoberta que se vai construindo como se de um jogo se tratasse - na Europa Central, com a família reduzida à mãe, que apaga deliberadamente a história do pai, trabalhando na reciclagem, vivendo na rota de refugiados, abrigando-se numa subcave partilhada com um crocodilo...

Vladimir é um eu questionador, pouco conformado com a sua situação, alimentando sonhos de poder entrar na Alemanha, de poder melhorar a vida, de poder esquecer pesadelos do desconhecido, de poder amar, agindo numa história que poderia assentar em três momentos - a vida antes da chegada de Noor, a relação com Noor, a ausência de Noor.

Na primeira parte, a personagem fala de si e dos outros, num mundo amargo, refugiando-se em si e no seu divagar - “As minhas melhores amigas são palavras no vazio, digo-as de vez em quando, ninguém as ouve.” A vida reveste-se de crueza - “À minha volta, o aspeto do mundo diz-me que aqui se aprofundou uma maldade. (...) A vida arrastou o melhor de nós para o fundo, como num enterro, devagar.” O presente não se reconcilia com o passado - “Este era um lugar bonito no tempo da indústria e da tortura. Eram empregos, percebem?, com empregos não se brinca. Quem nos roubou a mina roubou-nos tudo. Sobram os edifícios fabris, altos e feios ao sol, foi o que ficou do materialismo histórico.” A quase totalidade das referências às personagens que convivem no mundo de Vladimir é constituída por pequenos apontamentos, relacionados com momentos e com o conhecimento resultante da convivência na fábrica de reciclagem, espaço de degradação, mais do que de transformação - “Muita coisa nos tem abandonado, mas não a reciclagem, a reciclagem chegou sem avisar e desde aí nunca mais parou. É uma coisa moral, a reciclagem, é coisa do lixo. (...) A reciclagem mudou-se para aqui fugida de um país rico onde poluía imenso, isso e a mão de obra. O preço da mão de obra, para sermos exatos. Para funcionar, a reciclagem precisa de salários baixos em quantidades insuportáveis para um país rico. Sem salários baixos nem subsídios, a reciclagem são só boas intenções.”

O segundo momento acontece com a chegada de Noor, refugiada vinda de Nazaré, sofrida no seu convívio com a morte, personagem por quem Vladimir se apaixona, num trajecto que quer partir do zero. Ambos a trabalharem na reciclagem, na primeira conversa, ambos assumem que não têm um passado - para Vladimir, “um passado é objeto pesado. O passado é casa roubada, é pai incógnito. Uma casa judia, depois fascista, finalmente comunista. A mesma casa a passar de mão em mão. O passado pode ser um assassino na família, pode ser uma vítima, as pessoas não precisam da verdade.” Noor, que deseja chegar a Paris para estudar, intervém na fábrica, levando à paragem do trabalho, na tentativa da existência de melhores condições, como intervém na vida de Vladimir.

Na terceira fase da história, Noor está presente apenas na lembrança do apaixonado - “Tocar, curar, transformar, assim lembrarei Noor, não esqueço”, afirmação que resume o papel daquela mulher, num segmento que prossegue com reminiscências que ecoam do poema “E depois do adeus”, de José Niza. Noor partilhou a sua história, o seu tempo, o seu ser, com Vladimir e partiu rumo ao cumprimento do sonho que alimentava. Desabafará ele consigo: “Obrigado, Al-Nazri. Pelo caminhar e pelo estarmos de pé, pelo abrir de olhos e o começar a ver. Teria sido divino cair, teria sido divino voar. Obrigado, Noor, pelo amor e pela verdade. Obrigado pela vida.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1188, 2023-11-16, pg. 9.

 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Conhecer D. Américo Aguiar, o quarto Bispo sadino



Uns dias antes da tomada de posse do cardeal D. Américo Aguiar (n. 1973) como quarto bispo de Setúbal, João Francisco Gomes (n. 1995), jornalista do Observador, publicou a obra Américo Aguiar (Paulinas Editora, 2023), em cuja capa, além da fotografia do biografado (ordenado bispo em 2019 e nomeado cardeal em 2023), consta apelativa frase que, ao mesmo tempo que promove, resume o essencial do livro - “Quem é e o que pensa o organizador da JMJ, que o Papa elevou a cardeal”.

O pendor biográfico da obra surge manifesto no texto introdutório - “Editado, justamente a pretexto da sua nomeação cardinalícia, este pequeno livro pretende dar a conhecer alguns traços do percurso de vida de D. Américo Aguiar, desde a infância até à JMJ de Lisboa.” O período delimitado não chega à nomeação de D. Américo para prelado de Setúbal, região que apenas aparece mencionada no livro a propósito da data de 9 de Julho de 2023, quando estava “num armazém na zona de Setúbal onde uma equipa de voluntários da JMJ se dedicava, a grande velocidade, à montagem dos quase meio milhão de kits que seriam entregues aos participantes da Jornada” e sentiu a vibração do telemóvel - uma mensagem do comandante da Gendarmaria do Vaticano a felicitá-lo pela nomeação cardinalícia, notícia que já estava a correr, mas que o próprio desconhecia. Acaso interessante, pois: D. Américo soube que foi escolhido para cardeal na região que, volvidos três meses, viria a ser a sua diocese.

As fontes usadas por João Francisco Gomes são sobretudo jornalísticas (principalmente do Observador e das várias peças que assinou neste órgão), além de conversas com o biografado e com algumas pessoas que com ele privaram. O leitor assiste àquele que foi o percurso de um matosinhense nascido em Leça do Balio (onde também nasceu o primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, que D. Américo considera “uma figura importante na minha vida”), jovem que queria ser palhaço (sonho que caldearia o seu sentido de humor), oriundo de família modesta, activo no escutismo, com experiência autárquica (deputado municipal na Assembleia Municipal de Matosinhos) e trabalho desenvolvido na área do ambiente (foi um dos fundadores de uma associação de defesa do rio Leça e trabalhou como técnico de educação ambiental na Câmara Municipal da Maia), só ingressando no seminário em 1995 (depois de uma curta frequência seminarista em 1993). Na vida pastoral, iniciou-se como pároco em Azevedo de Campanhã (2001), tendo, depois, assumido cargos vários na diocese do Porto (a partir de 2002) - vigário-geral, chefe de gabinete do bispo D. Armindo Coelho, organização da visita de Bento XVI ao Porto, responsável pela Irmandade dos Clérigos (em cujo mandato aconteceu a manutenção da Torre dos Clérigos) -, a que sucederam funções em Lisboa, como direcção do Secretariado Nacional das Comunicações da Igreja e presidência do grupo Renascença Multimédia (2016) e nomeação para a organização da Jornada Mundial da Juventude e para coordenador da Comissão de Protecção de Menores do Patriarcado de Lisboa (2019).

Ao longo do livro, vai-se percebendo que as questões mais faladas sobre a Igreja Católica portuguesa têm tido a presença de D. Américo Aguiar, seja por um persistente trabalho de bastidores, seja pela sua relação com os meios de comunicação social (situação que muito bem conhece, mesmo pelo seu estudo intitulado Um padre na aldeia global - Evangelização e o desafio das novas tecnologias, de 2014, trabalho a que esta biografia poderia dar mais relevante nota), seja pela maneira como encara a relação da Igreja com a sociedade. Sucintamente, o autor liga a acção de D. Américo Aguiar às mudanças, quando escreve: “O novo cardeal português incorpora uma das características fundamentais da ‘era Francisco’: a consciência de que a Igreja Católica não existe numa bolha isolada do mundo; fala para pessoas concretas num mundo concreto e, se quer ser compreendida pelo mundo, terá de saber falar a linguagem do mundo.”

Quase metade do livro debruça-se sobre os dois acontecimentos mais conhecidos, que catapultaram o bispo para as primeiras páginas - a questão do abuso de menores por elementos da Igreja e a organização da JMJ -, espaço que contextualiza e historia os vários episódios envolvidos. O derradeiro capítulo faz um apanhado de várias citações de D. Américo sobre questões importantes para o debate da Igreja - aborto, eutanásia, celibato obrigatório dos padres, ordenação sacerdotal de mulheres, o papel dos leigos na Igreja, abusos sexuais de menores, quebra do segredo de confissão, participação dos cristãos na política, os “media” e o digital, a Igreja de hoje e o Papa.

Esta obra de João Francisco Gomes torna-se importante para se perceber o grau de aproximação e de compromisso com os problemas que D. Américo tem utilizado e, simultaneamente, para se percepcionar o nível de empenho que ele pode vir a desempenhar no cargo em que agora foi investido.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1182, 2023-11-08, pg. 9.


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Teresa Meireles e contos para levar no bolso (2)

 


Ideias importantes que perpassam pelas temáticas destes 101 Contos de Bolso, de Maria Teresa Meireles, relacionam-se com o comum que todos somos, num desafio à nossa forma de estar e de viver o mundo e à construção social em que estamos inseridos: convivem cenas de tédio de algumas vidas com os pequenos infernos que os outros acabam por criar ao minimizarem os efeitos provocados sobre a vida dos vizinhos (a situação da gaiola de periquitos que alimenta um dos contos é paradigmática deste abuso); há instantes em que surge a necessidade de degustar o tempo interior e de olhar o mundo (em torno de um chá, por exemplo) e outros que são ocupados por uma epifania contributiva da descoberta da nossa identidade; conflituam a forma plural de sermos, em que um sujeito se compõe de diversificados e antagónicos eus, com a culpa sempre atribuída aos outros, fruto de uma raiva e de um olhar de desprezo sobre o que nos cerca; viaja-se até à infância, em que se cruzam as crianças “adoráveis” (mas formatadas e intimamente pobres) com a ternura resultante de momentos tão memorizados como o acto de ter aprendido a contar pelos dedos da mãe; revisita-se a escola como espaço de convívio e de estranheza, resultante de fenómenos tão excêntricos quanto as aulas à distância no período da pandemia (e o que elas possibilitaram que se visse do desconhecido que todos mantemos) ou quanto a estranheza dos pais perante as atitudes dos filhos na comunidade escolar; ridicularizam-se as mitologias do quotidiano, expressas nas datas comemorativas que nada alteram quanto ao rumo ou ritmo das vidas e num duvidoso poder argumentativo em torno de um “achismo” desmesurado; ironiza-se sobre o absurdo, a superficialidade e as manias de algumas vidas e sobre os “homens das cavernas” que, por vezes, invadem os nossos espaços. Enfim, um leque vasto de quotidianos, retratos de um olhar sobre o mundo de forma crítica.

As histórias rápidas, depuradas, por vezes com final abrupto, inesperado, deixam o leitor a pensar, algumas a terminarem com uma pergunta retórica que incomoda ou com afirmações que avivam o sentido crítico das narrativas, pois, como é dito no conto em que se pretende pôr em causa os preconceitos dos olhares sobre geografias que nos são estranhas, “o contrário da realidade não é a irrealidade nem tão-pouco a ficção”.

Por estes contos passam duas fundamentais verdades que tecem os percursos de cada um: por um lado, a comodidade que vamos construindo num mundo muito próprio, pois “só vemos o que queremos ou podemos (que é uma maneira de dizer que todos vemos desequilibradamente, por excesso ou por omissão)”; por outro lado, a necessidade da reflexão e do olhar crítico sobre o nosso universo, pois “pensar agita por dentro e derrama para fora como leite em fervedor”.

Destes movimentos de oscilação, sai uma aprendizagem para que uma das narrativas nos convida: “a realidade é mais misteriosa e imaginativa do que qualquer estória que eu pudesse inventar.” Por isso, é que o derradeiro conto, “Parapeitos”, termina de forma peremptória: de peito assente no parapeito, a tia não se apercebeu dos factos que envolveram um pequeno pardal, mas a narradora relembra o sucedido, embora não o tendo compreendido - “Não sei o que aconteceu, ainda hoje não percebo, mas o pardal foi pulando, pulando, pulando até se acercar do vestido florido da minha tia e desaparecer por entre os seus seios para nunca mais ser visto - e a minha tia Graça nem deu conta do sucedido. Juro!” Este compromisso com a autenticidade, expresso numa exclamativa de juramento, serve para fechar o livro e para o leitor ser chamado a respeitar o pacto do narrador com a realidade.

Livro intenso, este, que mereceu o Prémio do Conto Manuel da Fonseca de 2022 e que nos desnuda perante as formatações e nos protege dos mecanismos que abalam e pautam a forma de se ser na nossa contemporaneidade, frequentemente desmontando convenções, outras vezes valorizando pequenos gestos do quotidiano, outras ainda levando-nos ao riso sobre nós próprios. Um bom convívio com o mundo que todos os leitores podem guardar no bolso...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1178, 2023-11-02, pg. 9