quarta-feira, 1 de junho de 2022

Álvaro Laborinho Lúcio e um romance sobre a esperança de Abril



“Foi ao entardecer que Maria Antónia sentiu os primeiros sinais e chamou o marido. João Aurélio acorreu de pronto. Depois de tantos anos, de tantas esperanças perdidas, desta vez é que era.” Assim se inicia As sombras de uma azinheira (Quetzal, 2022), de Álvaro Laborinho Lúcio, parágrafo dominado por duas personagens que transbordam esperança e confiança.

Segue-se o percurso rumo à cidade onde moravam, com chegada tardia, para, depois da meia-noite, entrarem na maternidade. Era a noite de 24 para 25 de Abril de 1974 e, ao mesmo tempo que a Revolução dominava as ruas, desenhava-se o drama de João Aurélio, que acabaria por se deixar destruir pela morte de Maria Antónia, não o salvando sequer o nascimento da filha, Catarina.

Assim, o romance corre a partir de uma noite em que princípio e fim convivem, relacionem-se eles com o regime político (queda de um sistema e início de outro) ou com as vidas das personagens (morte da mãe e nascimento da filha), conjugação da memória do tempo anterior à Revolução e do gizar de um novo projecto com percalços (o espírito revolucionário de João Aurélio esmorece num definhamento crescente e Catarina sofre a orfandade materna e o abandono paterno, calcorreando um caminho de permanente construção), viajando o leitor pelo Portugal de antes do 25 de Abril, num período de 40 anos (idade de João Aurélio em 1974), e pelo Portugal que daí surgiu, numa distância de 45 anos (idade de Catarina em 2019).

Os capítulos sucedem em alternância de personagens tratadas - ora com João Aurélio, ora o seguinte centrado em Catarina. Apenas os dois primeiros são inteiramente dominados pelo narrador, usando a terceira pessoa, ainda que o discurso indirecto livre e um narrador que conhece o pensamento das personagens constituam recursos que aproximam estas duas categorias narrativas, numa quase disponibilidade para que elas assumam também a narração, como acontece a partir do terceiro capítulo - João Aurélio conta a sua história, sempre na primeira pessoa, e Catarina surge da mistura do discurso do narrador com o discurso da personagem, ficando a ideia de que João Aurélio é personagem construída e estabelecida, enquanto Catarina é personagem que se vai construindo com a ajuda do narrador.

Quando o romance já passou do meio, há lugar para um “intervalo”, intromissão teatral do narrador-autor que convoca as personagens para uma conversa sobre o destino a dar-lhes, útil também para o leitor, incentivando a reflexão sobre a história e sobre o destino das personagens.

Romance cheio de reminiscências culturais, assentando em figuras que vão fazendo o seu caminho (“nós somos aquilo que vamos sendo”, dirá Catarina), leva a pensar sobre o enraizamento do 25 de Abril na identidade, numa leitura metafórica de Portugal - a azinheira, trazida da canção-senha de José Afonso; a simbologia e o valor das datas (implantação da República em 1910, Janeiro de 1934 e as manifestações da Marinha Grande, 25 de Abril em vários anos após 1974); a evocação ideológica no nome de Catarina. Quanto à identidade de Abril, ela é apresentada, com preocupação, pela personagem Virgolino: “Nada desiludido quanto à mudança que trouxe. Bastante desencantado quanto ao destino que se adivinha. Mas aí a responsabilidade é nossa.”

As referências à situação político-social no antes e pós-25 de Abril, as considerações sobre o que é ser professor, as histórias de amor, a reflexão sobre a vida e a solidão e sobre o sentido do envelhecimento e da morte, um olhar sobre a construção narrativa e sobre a palavra e a escrita são outras tantas linhas de leitura a seguir neste romance.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 860, 2022-06-01, p. 16.


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