quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Jerónimo Cardoso: palavras, palavras, mais palavras



Consta na biografia de Jerónimo Cardoso ser natural de Lamego, mas ignora-se a sua data de nascimento. Sabe-se ter falecido em Lisboa por 1569, depois de um percurso que associou o sacerdócio e o humanismo e de ter sido o primeiro autor a elaborar um dicionário de latim-português, corria o ano de 1551 (quinze anos depois de aparecer a primeira gramática da língua portuguesa de Fernão de Oliveira), facto por que Cardoso é considerado o iniciador “da dicionarização da língua portuguesa” (Telmo Verdelho) ou o “primeiro lexicógrafo português da língua latina” (Justino Mendes de Almeida).

Uma edição fac-similada desse dicionário, intitulado Dictionarium Juventuti Studiosae, surgiu há dias na colecção “Ex-Libris, Tesouros das Bibliotecas de Portugal”, promovida pelo diário Público e pela editora A Bela e o Monstro. Dicionário que tinha como público privilegiado os estudantes e 3300 entradas (a edição seguinte, de 1562, tinha já 12 mil registos), sabia-se ter existido mas só foi reconhecido um exemplar apenas há uma década no legado do filólogo e etnógrafo Leite de Vasconcelos (1858-1941) pertencente à biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Logo na primeira página se percebe estar este dicionário organizado por núcleos temáticos - “De corpore” (“sobre o corpo”) é o tema primeiro, organizado em subgrupos vários, relacionados com partes do corpo, por aqui passando vocabulário inerente à anatomia e relativo a expressões correlacionadas com os vários órgãos - por exemplo, a propósito do nariz, refere-se também o cheiro (“olfactus”) e, nesta área, “olidus”, como “cousa fedorenta”, ou “phaedor”, como “fedor”. Seguem-se grupos como “ornamenta corporis” (“ornamentos corporais”), onde entram os enfeites e o vestuário; “armorum vocabula” (“palavras das armas”); “de consanguinitatibus”, (relações familiares e de parentesco); “de aetatibus” (a idade e as fases do desenvolvimento humano); “de hominum officiis” (ofícios atribuídos ao homem); “officia navalia” (especificidades da área náutica); “officia mechanica” (áreas profissionais e técnicas); “dignitates ecclesiasticae” (mundo clerical); “de partibus aedium” (partes da casa), incluindo vocabulário específico relacionado com o lar, a adega, a conservação de alimentos, a cozinha, a horta, os animais; “de temporibus” (sobre o tempo). Não havendo ainda uma terminologia morfológica adequada, os adjectivos são invariavelmente apresentados sob a forma “cousa (de)”, como nos casos de “meticulosus” (“cousa medrosa”), “quadrupes” (“cousa de quatro pés”) ou“stupidus” (“cousa pasmada”).

Ao longo deste rol de vocabulário, não pode o leitor deixar de notar como evoluiu a explicação do sentido das palavras, às vezes soando a metáfora, como nos casos que se apresentam: “cicatrix, o final da chaga”; “diaphragma, a teia do coração”; “diarrhia, o fluxo do ventre”; “gangrena, o pasmo da ferida”; “oscular, beijar castamente”; “taciturnitas, o pouco falar”; “varix, a veia inchada com o trabalho”; “vulva, a madre das mulheres”. Interessantes, do ponto de vista da evolução do significado, são as definições encontradas para palavras como “candidatus, o que pede ofício”; “conscientia, o conhecimento de si”; “convivium, o convite particular”; “crepitus, o traque”; “diuturnitas, o muito tempo”; “intelligentia, entendimento”; “saltatrix, a bailadeira”; “tonsor, barbeiro”. Há palavras que são definidas não pela tradução para português, mas pela explicação em latim, sobretudo se relacionadas com o sexo, como “cunus, membrum muliebre” ou “sperma, semen testiculorum”.

As explicações avançadas para as palavras por Jerónimo Cardoso demonstram também que, à época, não existiriam (ou seriam invulgares) ainda muitas daquelas que, hoje, são familiares, como “convívio”, “candidato” ou “taciturno”. Com as duas edições do dicionário de Cardoso e com todos os que se seguiram, ficou também provada a verdade que Almada Negreiros escreveu: “Com vinte e seis letras do alfabeto escrevem-se todos os idiomas e não ficam escritas todas as palavras nem definitivos os dicionários.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 778, 2022-02-02, p. 8.


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