sexta-feira, 23 de abril de 2021

A guerra pela lente de Garcez

 


Começou por ser aprendiz de relojoeiro, mas o seu destino caiu sobre a arte fotográfica. Em comum entre as duas áreas, havia a precisão do instante - no primeiro caso, porque todos os instantes são medidas de tempo; no segundo, porque os instantes são captados e eternizados. Nascido em Santarém, Arnaldo Garcez (1885-1964) é o nome que associamos à reportagem visual da participação portuguesa no conflito mundial de 1914-1918, essa guerra que foi a primeira “a ser fotografada a partir de dentro”, como lembra António Pedro Vicente no livro Arnaldo Garcez - Um repórter fotográfico na 1ª Grande Guerra (Centro Português de Fotografia, 2000).

As fotografias de Garcez têm sido o suporte visual mais importante para ilustrar o que foi a vida do CEP (Corpo Expedicionário Português), desde o improvisado campo de instrução e de treino em Tancos (1916) até à celebração do Dia da Vitória (1919).

Por elas passa o quotidiano dos soldados em guerra, menos a acção da guerra ao vivo; no entanto, são elucidativas quanto às consequências dessa mesma guerra. Podemos ver momentos de descanso, de preparação técnica, de solidão, de encontro de cada qual consigo, de movimentação, de visitas oficiais; podemos ver cenas de destruição, de arremedo do que foi o terreno organizado e tratado, de aniquilação da paisagem natural ou construída. É sobretudo neste último grupo que podemos ter a percepção do que foi o sofrimento e a dor que esta guerra trouxe. Refere António Pedro Vicente que “a morte não era objecto fotográfico”, mas “a casa destruída, os campos devassados, as crateras abertas pelas bombas, os campos devastados, as árvores reduzidas a um tronco nu e chamuscado dão-nos, tacitamente, a imagem subentendida dos horrores então vividos”.

Esta riqueza documental que domina as fotografias de Garcez torna-as absolutamente incontornáveis se quisermos contar a Grande Guerra que os portugueses viram, sentiram e viveram, individual ou colectivamente. Daí que, logo na altura, muitas delas tenham sido usadas numa publicação como o semanário “Ilustração Portuguesa” para ir dando notícias da frente europeia em que o CEP participou, ou tenham sido aproveitadas para séries de postais com títulos como “Portugueses na Frente de Batalha” ou “Os Portugueses em França”, impressos pela casa parisiense Lévy Fils & Cie., uma das mais prestigiadas nesta área. Ainda hoje, a documentação fotográfica portuguesa da Grande Guerra vive dos momentos que Arnaldo Garcez eternizou, como podemos ver numa obra como Imagens da I Guerra Mundial, de Conde Falcão (1998).

Arnaldo Garcez - Um repórter fotográfico na 1ª Grande Guerra, além do pequeno mas importante estudo de António Pedro Vicente, reúne cerca de quarenta fotografias do fotógrafo escalabitano, mostra diversificada de situações e de áreas temáticas que poderiam ser consideradas - treinos militares, deslocação de tropas, quotidiano nas trincheiras, visitas oficiais às tropas portuguesas, relação com a população local, ruínas após ataques, assistência médico-hospitalar aos feridos, cemitérios de guerra. Mesmo sabendo-se que Garcez, depois de ter cumprido a encomenda da reportagem sobre a preparação militar do CEP em Tancos, partiu para a Flandres, equiparado a alferes, para ser o fotógrafo oficial (e, como tal, condicionado quanto ao que registou, pois integrava os serviços de propaganda), a verdade é que, se não fosse a sua recolha de instantes e a sua curiosidade, não poderíamos ler o “filme” da presença portuguesa. Em linha com outros artistas (amadores, a maioria), Garcez acabou por ser testemunha, como referiu Osvaldo Macedo de Sousa em Artistas-Militares na Grande Guerra (2018), “de um momento de suma importância na história da humanidade”, contribuindo “para criar uma visão lusa desta intervenção bélica”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 607, 2021-04-23, p. 20.


Sem comentários: