quinta-feira, 20 de junho de 2019

Frei Agostinho da Cruz na Arrábida: Os poemas do desassossego



Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) está a ser tema de comemoração por passarem, em 2019, o quarto centenário da sua morte e, em 2020, os 480 anos do seu nascimento. Estando entre os poetas maiores da literatura portuguesa, a sua obra nunca mereceu um volume de conjunto durante a vida do poeta; só no século XVIII apareceria o repositório dos seus poemas. No século XX, foram os poemas de Agostinho da Cruz significativamente reunidos por Mendes dos Remédios (1918), Augusto Pires de Lima (1941), José Régio (1963) e António Gil Rafael (1994). Já mais recentemente, houve uma seleção de textos seus publicados com um prólogo de Dalila Pereira da Costa (Poemas da Montanha. Vila Viçosa: Serra d'Ossa Edições, 2010) e, no âmbito das celebrações que estão a decorrer, o poeta Ruy Ventura organizou uma Antologia Poética (Évora: Editora Licorne, 2019).

Quando, em 1771, são publicadas as Várias Poesias do Venerável Padre Frei Agostinho da Cruz (Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues), já tinham passado 150 anos sobre a morte do seu autor, que escolhera a Arrábida para passar os derradeiros anos da sua vida. Esta obra vem acompanhada do texto “Vida do Venerável Padre Fr. Agostinho da Cruz”, assinado por José Caietano de Mesquita (“professor de Retórica e Lógica do Colégio Real dos Nobres”), biografia pormenorizada que demonstra a adesão do autor ao espírito do biografado.
Relata Mesquita que Agostinho da Cruz não conseguiu a mudança de Sintra para a Arrábida com facilidade. Homem nada dado a títulos ou a cargos, apenas aos 65 anos aceitou ser guardião do convento de S. José de Ribamar, a instâncias do Provincial franciscano, explicando Mesquita que esta aceitação ocorreu porque o frade “assentou que por este meio facilitaria um despacho, que já de tanto tempo intentava, e era que se lhe desse licença para se retirar à serra da Arrábida, a viver solitário e apartado de toda a comunidade dos homens, de quem achava que nada devia esperar para si.”
A transferência não foi fácil, mas, ainda em 1605, no dia de S. José, Frei Agostinho, depois de renunciar à guardiania (cargo que ocupou por escasso tempo), conseguia a concordância superior. E comenta Mesquita: “Não cabia em si de júbilo Fr. Agostinho por ter alcançado esta felicidade por que tanto suspirava: na sua alma louvava infinitas vezes ao Senhor, dava-lhe repetidas graças de o chegar a tempo, em que só para ele e com ele havia de viver”.
A vida na Arrábida foi de recolhimento nos 14 anos que ali passou (ainda que com alguma curta interrupção), vivendo sozinho numa cela, fora da cerca do convento. Mesquita recorda que “foi visto muitas vezes derramar copiosas lágrimas, outras estar elevado e fora de si, sem dar tino de nada exterior e terreno”, em vida de oração e contemplação, associando-o aos antigos padres do deserto. Esta opção de Frei Agostinho continuou a não ser pacífica, sobretudo para os seus confrades que viviam no convento e discordavam da vida eremítica, mas a sua escolha e prática mantiveram-se inabaláveis.
Em 14 de Março de 1619, Agostinho morria na enfermaria que existia em Setúbal, com fama de santidade - “Espalhando-se pela vila a notícia da morte do servo de Deus, logo pela manhã acudiu à enfermaria grande número de pessoas não só a venerá-lo, mas a cortar-lhe pedaços do hábito, que guardavam como relíquias preciosas com que remediar os seus perigos e moléstias; e chegou nesta parte a tanto o excesso da devoção que foi necessário vestir ao santo cadáver novo hábito para decentemente se poder levar à sepultura”, narra Mesquita.
O relato assinado por Caietano de Mesquita quase decalca o perfil biográfico que, cerca de quatro décadas antes, de Frei Agostinho da Cruz fizera Frei António da Piedade na obra Espelho de Penitentes e Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida (Lisboa: Oficina de José António da Silva, 1728-1737) ao longo de três capítulos que incluíram também uma mostra da poesia do frade franciscano (quatro sonetos, duas elegias e glosa a um mote). Relativamente à vida isolada de Agostinho da Cruz, refere Piedade: “Seguindo este varão apostólico as pisadas dos antigos Padres do Ermo, fechava as portas à sugestão dos pensamentos vãos, estando sempre ocupado.” Essas ocupações são mencionadas umas linhas adiante: “Por fugir pois a toda a ruína, que lhe podia maquinar o ócio, se a ele se entregasse, no tempo que lhe restava das suas obrigações e devotos exercícios, se divertia em fazer bordões que dava aos frades e oferecia aos Duques e Duquesas, quando o visitavam. Também pela inclinação que tinha à Poesia, compunha a vários assuntos espirituais muitos sonetos e outras variedades de versos.”
Pelos poemas de Agostinho da Cruz passa o seu desassossego. Não configurando um registo diário, ressalta, contudo, dos seus poemas terem eles sido escritos ao ritmo da vida, dos problemas, das reflexões, da oração. Bem terá ele dito na hora da morte, em jeito de recomendação, segundo Frei António da Piedade: “Não deixo contudo de lembrar aos mortais as angústias desta hora e lhes peço não guardem para ela o ajuste das suas contas, porque se expõem a perigo de as errarem pelo desassossego que padece a alma.” Vítor Aguiar e Silva, nessa obra incontornável que é Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971), bem considera que, na produção literária de Frei Agostinho da Cruz (como na de Camões, Diogo Bernardes ou Vasco Mouzinho de Quevedo), surge “uma poesia reflexiva, de análise psicológica ou de substância moral, dilacerada por dúvidas, congeminações e conflitos íntimos, que contrasta com a poesia sensorial, grandiloquente, teatral e patética, de teor descritivo e narrativo, que surge com frequência nos autores barrocos”...
Desprezando a vida palaciana, apesar de ter uma amizade forte com nobres, Agostinho exarou numa elegia a razão que o aproximava da Arrábida que o acolhera, aí deixando também, em jeito de testamento, o registo da sua derradeira vontade: “Agora, que de todo despedido / nesta Serra d’Arrábida me vejo, / de tudo quanto mal tinha entendido. // Com mais quietação livre me desejo / nela eu próprio cavar a sepultura, / que não junto do Lima, nem do Tejo. // Aqui, com mais suave compostura, / menos contradição, mais clara vista, / verei o Criador na criatura.” A ideia de para sempre permanecer na serra é retomada no final do poema: “Oh Serra das Estrelas tão vizinha, / quem nunca de ti, Serra, se apartara, / ou quando se partira esta alma minha / da terra, nesta tua me enterrara!” Ainda neste poema, a questão do desassossego sentido pontua num terceto: “Discorrendo dum noutro fundamento, / uma vez me perturbo, outra me indigno, / outra de mágoa pura arrebento.”
A Arrábida, em Frei Agostinho da Cruz, é um encontro último, final, que permite a união com o sagrado, num gesto de absoluta comunhão com o Criador, razão por que nunca desistiu de ver a serra como o seu refúgio, a única via que lhe permitiria chegar às estrelas.
Tão intensa ligação à Arrábida transformaria Frei Agostinho da Cruz no iniciador da tradição literária que tem tomado esta serra como motivo, num percurso que se estende até à actualidade, destacando-se, obviamente, mesmo por razões de proximidade e inserção geográfica, o nome de Sebastião da Gama (1924-1952), que não hesitou em convocar Agostinho da Cruz para os seus poemas em diversas ocasiões, como não duvidou sobre a necessidade de personificar a “serra-mãe”, trazendo-a para tema maior da sua produção poética. A Arrábida afigura-se, assim, como bem disse Teixeira de Pascoaes em conversa com o poeta azeitonense (Jornal do Barreiro: 11.Outubro.1951), como algo de essencial - “A Arrábida é que é o altar da Saudade. Eu pu-lo no Marão porque sou do Norte.” E, quanto a Frei Agostinho, responde Sebastião da Gama: “Esse adivinhou-lhe a essência, que foi como quem diz aos vindouros: Cantem agora. (Ele tinha tanto que falar de si mesmo, tanta amargura, tanta luta a contar!...)”
A Arrábida pinta(va)-se, pois, com as cores do desassossego, tornando-o questão essencial para a existência humana e para o sentir do(s) poeta(s)...

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