quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (1)


Homenagem a Sebastião da Gama em Estremoz, em 15 de Junho de 1953


Em Abril de 2006, o visitante estava no Museu de Arte Sacra de Estremoz e, no final do percurso, perguntou a uma senhora qual o trajecto para chegar ao Largo do Espírito Santo. Com ela, estava uma outra senhora que logo opinou: “Mas o senhor quer ver o Largo? Aquilo não tem nada de jeito, só montes de carros estacionados...” O visitante justificou que gostava de lá ir para ver a casa onde vivera Sebastião da Gama. “Mas conheceu-o?”, quis logo saber a senhora. Que não, que não o tinha conhecido, pois, quando nasceu, já Sebastião da Gama falecera havia meia dúzia de anos. “Mas eu conheci-o... Ainda o estou a ver. Com a boina, livros debaixo do braço, a sorrir, flores na mão, com a sua Joaninha...” E os olhos da senhora sentiam o prazer da memória, riam, viviam, poetavam o momento de recuo no tempo... e lá acabou por indicar o itinerário para o Largo do Espírito Santo. Impressionado com este efeito avassalador da memória, em que parecia que a senhora tinha visto Sebastião da Gama no dia anterior — quando, na verdade, já tinham passado 54 anos sobre a sua partida —, lá se encaminhou o viajante para o Largo, com uma história para contar.

Por isso, quando, dias depois, recordei este momento com Joana Luísa, mulher de Sebastião da Gama, ela sorriu enternecida e comoveu-se, lembrando vários alunos e diversas pessoas que conheceu em Estremoz no curto tempo de oito meses em que lá viveu. Cheguei, pois, ao Largo do Espírito Santo. E lá estava a casa, lápide na parede, em cenário que, mesmo com os automóveis estacionados a esmo, evocou a fotografia de 1953, protagonizada por vasto grupo de estremocenses que assinalou a colocação da lápide, gesto intenso de culto da memória. “Batei à minha porta, Irmãos, / entrai, / que eu tenho Amor para vos dar”, reza a inscrição, conjunto de três versos saídos do poema “A meus irmãos”, escrito na Arrábida em 30 de Agosto de 1944 e publicado no primeiro livro, Serra-Mãe, no ano seguinte. E, depois, o registo para a memória: “Sebastião da Gama viveu nesta casa de 11-5-1951 a 5-2-1952”.

Sebastião da Gama tinha 26 anos em 9 de Outubro de 1950, quando foi colocado na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha Santa Isabel), sendo seu director Irondino Teixeira de Aguilar (1914-1969), professor e autor de manuais escolares. Acabado o estágio e realizados os exames da parte pedagógica, Estremoz passou a ser o espaço de Sebastião da Gama, repartido com a Arrábida e com as lembranças de Lisboa, terra onde fez amigos, compôs poemas, leccionou, terra que deu a conhecer nas suas descobertas que partilhou em crónicas jornalísticas, semeando, talvez, alguns dos mais interessantes textos que sobre a vida da cidade se escreveram.

Chegado à Escola, Sebastião da Gama teve intenção de dar continuidade ao Diário que compusera nos dois anos lectivos anteriores. No entanto, poucas páginas nos legou, talvez por falta de tempo, como nos confessa no registo do dia 11 — “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo. E já não há-de ser pouco, que não tenho apenas, como em Lisboa, uma turmazinha.” Os registos diarísticos acabarão por respeitar apenas os primeiros dez dias, com observações que mais nos vão dizendo sobre o conhecimento que vai tendo dos novos alunos: o Francisco Graça, que “vem de bicicleta, todos os dias, de a dez quilómetros de Estremoz”; a Luciana, “uma carinha de riso”, em quem “até as tranças riem”; o Mário, que “trouxe flores de Vila Viçosa” e vários outros... enfim, alunos de diversas idades e ciclos, que  o levarão a escrever, ainda no dia 10, sobre uma turma: “Gente boa. Gente minha. Não há rapazes maus. Vou gostar destes e destas seis raparigas.” E sobre outra, numa apreciação global: “São uma porção de rapazes e cinco raparigas que vêm para aqui, parece-me, com a ansiedade de rapazinhos. Mas eu, sinto-o com tristeza, vou ficar muito aquém das suas esperanças. Delicados. Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1448, 2025-01-15, pg. 10.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Quando Romeu Correia escreveu sobre Sebastião da Gama

 


Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.

Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.

De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”

No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”

A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.

Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”

A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.

O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (2)

 


A primeira descrição que Domenico Laffi faz em terras portuguesas nesta Viagem de Pádua a Lisboa acontece em Serpa, onde “as casas são pequenas, isto é, baixas devido ao vento do oeste, e todas com chaminé, ou seja, lareira onde se acende o fogo, decerto a coisa mais bonita delas”, construções que se apresentam “rodeadas de grandes muros, muito altos” e “feitas de várias maneiras e de vária arquitectura, de modo que, de longe, são agradáveis à vista.” Em Alcácer do Sal, “bela vila banhada por um braço do oceano”, surpreendem-no as salinas e o embarque de géneros.

É também neste cais que toma lugar num barco para chegar, pelo meio-dia de 14 de Setembro de 1687, a Setúbal, que classifica como “cidade bonita, com o seu porto de mar muito mercantil e capaz de conter qualquer armada e navios de qualquer lotação”. Na apresentação que faz da urbe, refere a história de Tubal, “neto de Noé, que lhe deixou o seu nome”, mas o que mais o impressiona é o momento em que, no dia seguinte, assiste à ida do Santíssimo “a um enfermo com muita solenidade e cortejo de gente e uma grande quantidade de tochas” por ruas “bem limpas e enfeitadas”, cheias de “tapeçarias nas janelas e nas montras das lojas, coisa muito bonita de ver e que transmitia grande devoção.”

Ao longo do relato, há mais três referências a Setúbal: ao apresentar a história do início de Portugal, repete a explicação do primeiro habitante, Tubal (“o primeiro que habitou este reino foi Tubal, neto de Noé, que deixou o seu nome à cidade de Setúbal”); quanto aos portos, refere que Portugal “possui diversos portos excelentes: o primeiro é o de Setúbal, o outro é o da cidade do Porto, na foz do Douro, mas o mais famoso é o de Lisboa”; ao fazer o balanço sobre a importância das localidades do reino, regista que, “além das cidades episcopais, há terras notáveis, como Vila Viçosa, Almeirim e Salvaterra, Setúbal, cidade de Espanha célebre pelas suas salinas, Avis, Palmela, em que há os conventos magistrais da Ordem de Avis e da Ordem de Santiago.”

Mas Setúbal era apenas um ponto no itinerário de Domenico Laffi e do seu companheiro peregrino, pois o objectivo era chegar a Lisboa, sítio onde nasceu Santo António. Por isso, a viagem é retomada, com saída de Setúbal pela “porta oeste, ladeando um grande e comprido aqueduto de duas arcadas sobrepostas”, de onde subiu até Palmela, aí contemplando a vista sobre Setúbal e Lisboa e conhecendo “os conventos magistrais da Ordem de Santiago e da Ordem de Avis”, logo seguindo pela Moita, onde embarcou para chegar, “com a ajuda de Deus, à tão suspirada cidade de Lisboa a 16 de Setembro do ano 1687.”

Na capital do reino, onde ainda assistiu aos festejos do casamento de D. Pedro II com a princesa da Casa de Neuburgh, passará Laffi três dias, com intenso programa de visitas à cidade que considera “a oitava maravilha do mundo” e “rainha dos mares”: torre de Belém, igreja e convento dos padres Jerónimos, santuário Madre de Deus, Santa Engrácia, Rossio, igrejas de S. Roque e do Carmo, entre outros pontos. O que mais o comove é a visita à zona da Sé, à “devota igreja de Santo António dito de Pádua, que era cidadão de Lisboa”, construção realizada “a partir da casa paterna onde nasceu o santo”: “com a ajuda de Deus disse missa nesta igreja a 18 de Setembro, com grande felicidade minha (...). Quem entra nesta igreja entra numa espécie de paraíso, não só pela santidade e devoção que transmite, como também pela riqueza e beleza com que brilha.”

A descrição que Laffi faz de Lisboa, onde só esteve por três dias, revela-se interessante porquanto acaba por ser um retrato do espaço urbano que o terramoto de 1755 acabou por alterar profundamente. Em 19 de Setembro, a viagem recomeça, com a opção de seguir pela costa até ao Norte do país para daí chegar a Compostela. Pelo caminho, vão ficando os registos do convento alcobacense, do “sumptuosíssimo templo” da Batalha, de Leiria (situada em “fértil planície, rodeada de montanhas igualmente frutíferas”), de Coimbra (onde “todas as construções se apresentam, olhando para elas da parte oposta da ponte, como se estivessem umas em cima das outras”), Porto (onde teve de permanecer seis dias “por causa de umas fortes dores nas costas”, situação que o impediu de descrever a cidade com pormenor), Viana do Castelo (onde há “lindos chafarizes espalhados, cá e lá, pela cidade” e um “porto de mar lindíssimo”, apesar da chuva) e Caminha (onde se impressiona com a vista sobre o outro lado do rio Minho).

Nesta Viagem de Pádua a Lisboa, Laffi é um viajante culto, observador, crítico, com sensibilidade artística, atento ao mundo, merecendo bem as palavras de Feliciano Novoa Portela, que disse ser a sua obra a “de um verdadeiro ‘homo viator’, para quem a vida é uma contínua viagem para encontrar o enigma da existência, na busca de uma constante que explique o passado, o presente e também o futuro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1438, pg. 2.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (1)

 


Por meados de Setembro de 1687, no dia 14, dois religiosos italianos, peregrinos e viajantes, passavam em Setúbal — eram eles o padre Domenico Laffi e o frade Giuseppe Liparini, vindos desde Bolonha, de onde tinham partido em 24 de Maio desse ano. Dessa passagem ficou registo no livro de Laffi intitulado Dalla tomba alla culla è um lungo passo: Viaggio di Padova ove morse il glorioso S. Antonio a Lisbona ove nacque, que teve primeira publicação em 1691, em Bolonha, e cujo itinerário português foi editado em 1988 pela Università degli Studi di Perugia, em trabalho a cargo de Brunello De Cusatis. Uma década depois, em Portugal, surgia a obra O Portugal de Seiscentos na ‘Viagem de Pádua a Lisboa’ de Domenico Laffi, estudo crítico também assinado por De Cusatis (Editorial Presença, 1998), incluindo o capítulo de Laffi dedicado a Portugal.

Sobre a biografia de Laffi, o autor do relato, pouco se sabe, não se ignorando, contudo, o rol bibliográfico que assinou e teve ampla repercussão (textos teatrais e narrativas de viagem — a Compostela, a Lisboa e à Terra Santa). Nascido em 3 de Agosto de 1636 em Vedegheto di Savigno, foi para Bolonha ainda na infância. Em 1666, quando já era sacerdote, fez a sua primeira peregrinação a Compostela, local que visitou várias vezes — em 1670, aquando da segunda viagem, redigiu a obra Viaggio in Ponente a San Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna, publicada em Itália em 1673, título que teve reedições em 1676 e em 1681 e graças ao qual Laffi é considerado pela Xacopedia “um dos peregrinos mais importantes da história de Santiago por ser autor do relato de peregrinação de maior significado e relevância conhecido até agora”.

A vinda a Portugal acontece pela razão que o título da obra sobre essa viagem indica — peregrinação a partir de Pádua, onde está sepultado Santo António, para chegar ao local do seu nascimento, Lisboa, percurso justificado com a transcrição da frase “dalla tumba alla culla è um lungo passo” (“do túmulo ao berço é um longo passo”), aforismo que resulta de adaptação do último verso de um soneto do pós-renascentista Giambattista Marino, nas suas Rime (1602), ao afirmar que “da la cuna a la tomba è um breve passo” (“do berço ao túmulo é um pequeno passo”).

A entrada de Laffi em Portugal aconteceu nesse Setembro de 1687, em dia não indicado, na zona de Aldeia Nova de São Bento, num trajecto que passou por Serpa, Cuba, Torrão e Alcácer do Sal, até chegar a Setúbal (no dia 14); a viagem prosseguiu por Palmela e Moita, com paragem em Lisboa dois dias depois; a 19, a partida leva os viajantes por Loures, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça, Leiria, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Caminha, para posterior entrada na Galiza, rumando a Compostela, onde chegaram a 15 de Outubro. Logo no início da obra, é justificada a narrativa: “Eu, para satisfazer as curiosidades discretas e indiscretas de todos, direi, com mera verdade, ter feito esta viagem, não sei se impelido mais por natural propensão, por talento sujeitado à curiosidade de ver coisas novas, ou por espírito de piedade para o glorioso Santo António de Pádua. Fui àquela cidade para adorar, naquelas sacras cinzas, vivas sementes de eternidade, e recolher copiosa messe de graças.” Quanto à decisão de passar a escrito o visto e vivido, explica: “senti-me na obrigação de fazer um sucinto relato para dar prazer a quem goza deste tipo de leitura, como também para agradar a quem se sinta movido, por devoção, a fazer peregrinação semelhante. Isso fiz com o estilo que me pareceu mais adequado para uma simples narração.” O relato que o leitor tem ao seu alcance está eivado de informações que Laffi recolheu nas leituras sobre o país e fortemente alicerçado naquilo que testemunhou, aspectos que, na edição portuguesa referida, merecem adequadas notas de contextualização por De Cusatis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: 2024-12-11, pg. 10.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (3)

 


Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.

Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.

A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.

As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (2)

 


As imagens da região de Setúbal vindas através da poesia tinham já ocupado Daniel Pires em 2001, quando uma equipa que integrou também Fernando Marcos e António Quaresma Rosa organizou a exposição Setúbal - Terra de Poetas e Cantadores, reunindo uma centena de autores e 349 títulos, recenseados em catálogo, em cuja introdução se insistia na “dinamização cultural da cidade de Setúbal e reconstituição da sua memória”, surgida de “investigação aturada” que pretendia uma “perspectiva diacrónica da poesia de matriz setubalense”, coligindo os nomes conhecidos e “os populares e os menos consagrados”. Assim se originava uma obra que, mais do que uma lista, se transformou num elemento de estudo, fornecendo pequena antologia e notas biográficas sobre os autores, atitude que visava a luta contra a efemeridade das exposições, “fazendo a ponte com os investigadores vindouros que pretendam conhecer a identidade cultural da cidade”, afinal uma obra para poder ser uma referência de estudo e de conhecimento.

A criação do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) em 1999 surgiu de uma intervenção de Daniel Pires no Forum “Pensar Setúbal”, realizado no mês de Maio desse ano, em que defendeu a criação de um centro de estudos e de informação sobre o vate sadino, com a preocupação de o âmbito de estudos ser alargado a outras temáticas locais. A ideia conseguiu agregar cerca de 80 pessoas, que foram os sócios fundadores do CEB, e, nos estatutos, publicados em 1 de Outubro seguinte, eram claras as intenções: divulgar a obra e a personalidade de Bocage, “fazer o enquadramento dos escritores locais e nacionais e dinamizar culturalmente a cidade de Setúbal”. Cerca de um mês e meio depois, em 22 de Dezembro (no dia a seguir ao que marca o falecimento de Bocage), o jornal O Setubalense incluía o primeiro número do que foi a “Página Cultural” do CEB, assinando Daniel Pires um texto que revelava uma antiga e rara tradução italiana de um poema bocagiano. A “Página Cultural”, de publicação mensal, prolongou-se até ao número 155, saído em 29 de Abril de 2013, sempre com uma abordagem de assuntos de interesse local e regional, por onde passaram investigadores, escolas e criadores artísticos, numa pluralidade de saberes. Daniel Pires, além de ter sido seu co-coordenador durante uma temporada, aí fez ampla divulgação de textos esquecidos e publicou ensaios relacionados com figuras locais (como Bocage, o poeta popular Calafate e o historiador João Carlos de Almeida Carvalho), com a implantação do regime republicano e suas marcas em Setúbal ou com histórias da educação, entre outros temas, chegando a defender que o CEB deveria ser o motor da constituição de uma Biblioteca de Fundo Local com vista ao “estudo do património cultural da cidade”.

Nesta missão divulgadora, Bocage tem sido, sem dúvida, a figura mais tratada por Daniel Pires, estudo em que nunca esquece a contextualização de Setúbal à época da juventude do poeta, seja colhendo elementos descritivos, seja pela demanda de iconografia sua contemporânea, reveladora do que eram o espaço e a vida sadinos, como se pode ver, por exemplo, nesse repositório de imagens que é a obra Bocage - A Imagem e o Verbo, editado em 2015. Outros contributos como a colecção de postais Bocage na Prisão, de 1999, o baralho de cartas designado Bocage e a sua Época, de 2005 (em colaboração com Manuel de Vilhena), ou a reedição das Fábulas de Bocage, em 2000 (a partir da edição de 1905), mantendo o mesmo espírito de ligação do poeta à região, apresentam também objectivos de divulgação junto do grande público, particularmente em idade escolar, visando o desfazer de imagens fáceis construídas em torno do poeta, como a do herói das anedotas, e dando-lhe a visibilidade merecida como actor de uma época ideologicamente conturbada.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1422, 2024-11-27, p. 10

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Arrábida e imagens da sua espiritualidade (2)

 


Em A Espiritualidade da Arrábida, as tentativas de partilhar o que a Serra sugere oscilam entre a impossibilidade da precisão descritiva — “espaço que flutua acima de todas as tentativas de o adjectivar”, escreve Salvador Peres — e esse desafio da descoberta que põe à prova e sugere outros esforços — “subir à Arrábida significa uma oportunidade para contemplar a Esperança e dinamizar a Fé e o Amor”, defende Hermínio Araújo. A aceitação deste desafio causado pelo impacto da Serra é um jogo permanente, assente sobre a simbologia que a ampara e sobre o mistério que a adorna, como descobre Casimiro Henriques: “Tu és a serra e a Serra és tu, ali perdido diante de um mundo que não consegues criar pelo teu poder.” Ou, como diria o poeta que escreveu o seu primeiro poema sobre a beleza da Arrábida aos 15 anos, Sebastião da Gama, numa recomendação ao passeante: “Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma. Leve, se quiser, os versos de Agostinho e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus. (...) O Céu fica-lhe perto.” Uma forma de juntar o criador e a criatura, afinal... que perpassa pela descoberta da grandiosidade das coisas simples captada por Carlos Vale Rego, pelo confronto com a insuficiência da palavra para dizer a magia da terra assinalado por José-António Chocolate, pela contemplação que se exprime em oração na voz de Lourenço de Morais, pelo afago introspectivo da mãe-serra enaltecido por Isabel Melo, pela proximidade do historial franciscano trazido por Helena Mattos, pela centralidade que este espaço envolve lembrada por Joaquina Soares, pelo efeito transformador e interpelativo registado por Ruy Ventura...

As fotografias chamadas para este livro, resultantes de olhares, de momentos e de descobertas, corroboram essa onda de mistério em torno da paisagem, intensificada pela impressão digital da Natureza, pelos ângulos de visão pessoais, pela recusa do cenário imediato, pelas tonalidades em diversos graus das mesmas cores ou pela imponência do preto e branco, pela vastidão sugerida, pela luminosidade a favorecer o pormenor, pelo jogo entre luz e sombra, pela pluralidade de motivos, todas rendidas ao que mostram e rendilhadas com legendas sugestivas, por onde perpassam emoções pessoais, deslumbramentos, recriações de sentido, tudo em favor de uma arte poética da imagem, haja em vista títulos como “Escondido, mas visível”, de Nazar Kruk, “Porto seguro”, de João Completo, “In-Quietude”, de Carlos Medeiros, “Flor do cardo que eu guardo”, de José Alex Gandum, “Que serra é esta, que comigo fala e me sente?”, de Alberto Pereira, “Arrábida tranquila”, de José Canelas, “A alma do lugar”, de Carlos Sargedas, “O teu adormecer”, de António Alves da Costa, ficando apenas por intitular o surpreendente dourado sobre a serra do Risco, de João Moura.

Nos olhares fotográficos, há um outro grupo de leitura mais imediata, registo de momentos festivos e religiosos captados pelas lentes de Américo Ribeiro e de José António Carvalho, marcas de tempos diferentes neste “romariar e rezar” (como refere Luís Marques no ensaio já mencionado) em que a religiosidade popular surge aliada à Natureza.

Retratos escritos ou fotográficos, a verdade é que por todos os registos deste livro perpassam partes de um texto maior, uno, deixando adivinhar que a Arrábida impressiona sempre por aquilo que não somos capazes de dizer porque o silêncio se nos impõe para que ouçamos o concerto da cor com o restolhar segredado pelas veias da Serra. Assim percebemos que a reinvenção, a reconstrução ou a abordagem iniciática do ser da Serra serão sempre complexas, difíceis e angustiantes, na medida em que nenhuma das representações será suficientemente totalizadora de forma a desocultar o seu mistério.

É Viriato Soromenho-Marques quem assina o derradeiro texto, em tom posfacial, recapitulando momentos históricos em torno da “presença cultural e simbólica na nossa consciência” da Arrábida, lembrando as perspectivas científica, ecológica (mesmo ecocrítica) e literária e afirmando-a como uma “causa colectiva”. A motivação criada pela Arrábida a todos quantos a visitam ou aos que nela vivem mostra que ninguém fica insensível perante o que vê ou o que sente — há os textos que tentam guardar os sentimentos, há as memórias que afagam a distância do tempo, há os desenhos que são geradores de uma reconstrução, há as fotografias que se apresentam com uma mensagem muito mais intensa do que o registo lacónico de se ter estado ali... tudo porque, como Soromenho-Marques refere, “o que importa colocar em relevo é o permanente convite da Arrábida para a meditação e a viagem interior”, elementos estruturantes para aquilo que, a fechar o seu texto, defende: “A verdadeira força da espiritualidade é aquela que se funde na celebração da existência.” E a Arrábida deve ser celebração, sempre! Porque, como dizia a personagem de Agustina Bessa-Luís, “parece que o mundo foi criado daqui!”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1417, 2024-11-20, pg. 9.


Arrábida e imagens da sua espiritualidade (1)

 


Quando abriu a janela e olhou para o exterior, a personagem só pôde exclamar: “Parece que o mundo foi criado daqui!” Este momento é relatado no romance As Terras do Risco, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1994 (Guimarães Editores). A frase, que exprime o maravilhamento de quem a diz, no momento em que olha a Arrábida, remete-nos para a expressão do sublime, algo impossível de ser descrito, por muitas tintas que se ensaiem, por muitas frases que se recomponham, por muitos ângulos que os olhares procurem, por muitas combinações em que os sons se concertem. 

Conseguir contar a beleza seria igualá-la, operação impossível porque o belo é único, irrepetível, envolvendo uma aguarela de mistério, uma linha de sentido que a Arrábida, esse espaço que corre desde a Comenda até ao Cabo Espichel, sempre tem albergado e suscitado. Com razão escrevia Luís Marques em 1990, no seu estudo intitulado Arrábida e a sua Religiosidade Popular (Assírio & Alvim): “A essência da serra continua a sobrepor-se a todas as obras e transformações já realizadas. Um espelho disso, que chegou aos nossos dias, verifica-se (...) na interpretação que dela fazem, designadamente, os amantes da natureza, os poetas, os religiosos e os investigadores. (...) Hoje, como ontem, apenas os que se deixam penetrar pela serenidade da sua paisagem ou pela sua sacralidade conseguem encontrar a imutabilidade e intangibilidade que a serra permanentemente desencadeia.”

Servem estas duas referências — da ficção, através de Agustina Bessa-Luís, e do ensaio, por intermédio de Luís Marques — para chegarmos à obra A Espiritualidade da Arrábida, iniciativa louvável do Grupo dos Amigos da Paróquia de S. Sebastião, acabada de publicar, que reúne duas dúzias de olhares contemporâneos sobre a Serra, distribuídos pela escrita e pela imagem em partes iguais, associando-se ainda a expressividade dos dois nomes indiscutivelmente mais arrábidos, pelo contributo inegável que deram para a integração desta Serra na tradição literário-cultural portuguesa: Frei Agostinho da Cruz, religioso e poeta, que neste espaço viveu os seus últimos quinze anos no século XVII, e Sebastião da Gama, poeta e professor, que também aqui se acolheu e construiu o seu poemário em torno da simbologia da Serra, na década de 1940. 

A emergência desta obra pode ser vista a partir do que António Melo, um dos obreiros deste projecto, regista no texto de apresentação: “Este livro pretende ser uma prova de admiração pela Beleza e Espiritualidade da Arrábida e por todos os que a conseguem preservar na sua imortalidade.” Trata-se de um propósito forte, porque reflecte um sentimento do presente, num contínuo espanto perante o sublime, e, simultaneamente, homenageia a múltipla partilha que gerações nos têm transmitido neste caminho que tem sido o descortinar as linhas de sentido associadas à geografia social, cultural e natural da Serra, a que, metaforicamente, na obra Terral, o poeta Miguel de Castro chamou “varanda de ver o mar” (Edições Estuário, 1990). A importância desta obra é assinalada também no prefácio que D. Américo de Aguiar subscreve, um pouco em tom confessional, pondo-se à prova e testemunhando a sua descoberta: “Não estava prevenido para o impacto da beleza do mar e da serra. Sempre viajei muito do Norte ao Sul da nossa terra, na maior parte das vezes pelo cinzento monótono das auto-estradas. (...) A serra da Arrábida pede-nos silêncio e alguma solidão. É um convite renovado ao subir da montanha.” A recomendação é um desafio, exactamente o mesmo que se pôs ao frade franciscano Agostinho da Cruz, que lhe permitiu registar a beleza da experiência numa exclamação elegíaca — “Ó Serra das estrelas tão vizinha, / Quem nunca de ti, Serra, se apartara!” São, aliás, estes dois versos que fecham o percurso sugerido pela organização textual deste livro, que contraria a progressão cronológica, partindo das reflexões contemporâneas para recuar até ao século XVII.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º1416, 2024-11-19, pg. 7.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (1)



Começarei por duas citações, uma de um poeta, outra de um editor, ambas de quem escreve e vive os livros — a primeira, de José Tolentino Mendonça, que nos lembra que “em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada”; a segunda, de Serafim Ferreira, a considerar que “o livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem”.

A razão destas escolhas cruza-se com o papel que Daniel Pires tem tido no enriquecimento do que podemos chamar uma bibliografia setubalense, não só pelo contributo que tem trazido desde há muitos anos para os estudos bocagianos —editando a obra de Bocage (nas Edições Caixotim, entre 2004 e 2007, e na Imprensa Nacional, entre 2017 e 2018) ou contribuindo para o seu estudo (Bocage e o Livro na Época do Iluminismo e Bocage - A Imagem e o Verbo, ambos de 2015, Bocage ou o Elogio da Inquietude, de 2019, O Essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 2023, além de outras obras em que colaborou), títulos necessariamente relacionados com Setúbal, quer pelas circunstâncias biográficas, quer por algumas alusões, ainda que escassas, de Bocage à sua região de origem —, mas também pelo que tem posto a descoberto no domínio do conhecimento sobre Setúbal, fazendo ressurgir textos do pó dos tempos e construindo outros a partir das suas investigações e demandas por arquivos e bibliotecas várias, todos eles iluminando o que tem sido a aventura da identidade na região dominada pela Arrábida.

E será justamente pela serra que entramos, uma vez que, como tema, ela consta já na tradição literária portuguesa, desde, pelo menos, o século XVI. Durante muito tempo, referências literárias da Arrábida foram dominadas por uns poucos nomes, a começar em Frei Agostinho da Cruz, passando por Alexandre Herculano e desaguando em Sebastião da Gama. No entanto, a persistência de Daniel Pires e de António Mateus Vilhena possibilitaram ao leitor a pluralidade dos muitos olhares que sobre a Arrábida têm surgido na literatura lusa, desde que, em 2002, publicaram a obra A Serra da Arrábida na Literatura Portuguesa. Se, nessa edição, nos mostraram cerca de meia centena de poetas que versejaram sobre a serra que Pascoaes confessou ser o verdadeiro “altar da Saudade”, como nos contou Sebastião da Gama depois da visita que lhe fez em Setembro de 1951, quando saiu a segunda edição, em 2014, o número de autores subia já para cerca de oito dezenas, com textos escritos num período temporal entre o século XVI e 2014, valendo a pena atentar na justificação que os antologistas apresentam nos prefácios de ambas as edições: a pretensão foi a de “dedicar especial atenção ao património cultural da cidade de Setúbal, contribuindo, desta forma, para a sua valorização e para a preservação de uma memória que faz parte integrante da nossa identidade”, tarefa resultante de investigação “metódica em vários arquivos e bibliotecas nacionais”, partilhando textos que estavam “dispersos por livros ou periódicos de muito difícil acesso”, assim contrariando “a impossibilidade da sua fruição pela maioria das pessoas”.

No mesmo ano de 2014, os dois investigadores avançaram também na publicação da obra Descrição da Arrábida, a partir de manuscrito guardado na Biblioteca Nacional, contendo o texto do franciscano madeirense Inácio Monteiro, assim pondo a descoberto uma obra de referência no domínio da literatura de viagens em Portugal, simultaneamente um bom exemplo da “estética literária barroca”, que descreve “a paisagem envolvente” e os dois conventos arrábidos, dá “informações relevantes no domínio arquitectónico” e apresenta “ampla visão da natureza em estado puro e uma panorâmica de resultado da acção humana sobre ela exercida.” Este trabalho, construído no confronto de dois manuscritos e de uma versão publicada no jornal O Azeitonense (em 1920), trouxe ainda luz sobre o seu autor, que, até esta edição, se supunha ser um jesuíta oriundo do Norte do país, com vida feita em Roma e falecido em Ferrara...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1412, 2024-11-13, pg. 10.

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ana Mata: inscrever Florença pelo olhar



“Fui com o objectivo preciso de me ir espantar. Fui seguindo a ideia de passear o mutismo, nesse princípio de desejo de ser olhar aberto e recepção. (...) Fui anónima: tanto para atravessar a cidade, como para ser atravessada.” Assim descreve os seus sentimentos a setubalense Ana Mata (n. 1980), no momento que antecede a narração dos dias passados no visitado paraíso da arte, itinerário contado em Carta de Florença (Sr Teste Edições, 2024).

Ainda que o título nos remeta para o estilo epistolográfico, a verdade é que nesta obra se mesclam também registos diarísticos e de memória, com a reprodução de duas dezenas de águas-fortes com tinta sanguínea, gravuras a partir de peças vistas nas mostras que o espaço florentino permitiu. A intenção deste registo, em que se misturam o tom autobiográfico e a faceta ensaística, surge logo no início, sublinhada em três aspectos: “Esta escrita serviu o sentimento de aventura íntima, a que não desmaiasse no caos, a minha permanência na experiência.” Descoberta e continuidade na memória são, pois, dois tons fortes nesta visitação (no que esta palavra sugere de curiosidade e de abertura) realizada em Março de 2023, afigurando-se o registo escrito como a forma de albergar o que poderia ser a “síndrome de Florença”, caracterizada pela comoção perante o fascínio da arte.

A viagem foi preparada — “Comecei, antes de ir, a viagem a Florença”, escreve Ana Mata logo no início da narração para dar conta de que se deixou povoar pelas imagens antecipadamente recebidas, impressão forte que impregnou a necessidade de ir “à presença”. Como antecedentes da partida, a recomendação de amigos associou-se a leituras de outras experiências do mesmo itinerário legadas por relatos de Stendhal e de Rilke ou por um poema de Bernardo Pinto de Almeida, de maneira que melhor se cumprisse a intenção da viagem.

Perante as obras vistas, foi forte a impressão sentida pela figura humana, pela elegância dos gestos nos quadros, pela expressão de dor, pela força dos pormenores. Deslumbramento e comoção não faltam neste relato intenso, como no momento em que se fala dos quadros de Fra Angelico, vistos no Museu de S. Marcos: “Há pinturas pequenas e tão delicadas que me parecem terem sido pintadas num estado de oração íntima”. O cerne do sentimento perante estas telas cola-se às raízes de quem contempla: “Estou grata pela religiosidade que me deram em criança, mesmo se já não cumpro os ritos ou se procuro outros lugares de infinito. Se tivesse uma repulsa pelo religioso, pelas histórias de Cristo, de Maria, dos anjos, não veria estas obras da mesma maneira, tendo então um filtro que creio que bloquearia o seu sentimento profundo.”

Todo o livro de Ana Mata é uma tentativa para que se cumpra o que revela quase no final — “Agora quero que Florença permaneça.” A reflexão surge a bordo do avião, em regresso a Lisboa. “Que fica deste convívio imenso com estas obras feitas por uma humanidade grandiosa, magnífica, que aponta para o alto? Que fica também desta lição de humildade? Andei de corações nos olhos, com esse filtro apaixonado que tanto activou a hemoglobina nas minhas sanguíneas.” E, como conclusão: “Agora, os nomes dos lugares do mapa já não me são abstractos. Florença inscreveu-se.” Uma “inscrição” a tal ponto forte que as sanguíneas a partir de Botticelli, Caravaggio, Tiziano, Memling, Fra Angelico e outros têm de fazer parte do livro, uma forma de apropriação a cargo da visitante.

Partilhar a arte vista em Florença neste livro é um pouco como admirar a cidade banhada pelo Arno, atravessado por pontes, a partir da praça Miguel Ângelo, um misto de distância e de impossibilidade de tudo apreender ou uma relação de sedução. Nesta cidade da Toscana, também Ruben A. (1920-1975) sentiu o fascínio, relatado em Páginas - III (1956): “Florença tem coisas demais e é como uma mulher possessiva que tem sempre qualquer pormenor ainda não visto — sair de Florença é sentir o mesmo alívio de liberdade em semelhança a férias conjugais. Na nossa vida há momentos só nossos tão intimamente nossos que ninguém pode tentar sequer incluir-se.” A metáfora é forte, revelando a vontade de continuar a descobrir o espírito da cidade, o de olhar a arte, nela se inscrevendo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1407, 2024-11-06, pg. 10.