sexta-feira, 3 de maio de 2024

Álvaro Laborinho Lúcio e a pergunta fundamental (2)



De perguntas é feito o percurso na prática da justiça, sobretudo para se entender que “a justiça radica no povo”, embora a sua administração passe para determinadas mãos em função de um contrato social. E não é sem um respeito profundo que lemos, trazidas por Álvaro Laborinho Lúcio para este A Vida na Selva, as histórias do juiz do Soajo, da ética da polícia, do estatuto carregado na simbologia da beca judicial, da reflexão que pode emergir do que seja “fazer justiça pelas próprias mãos”. Perguntar deve ser uma preocupação contínua e persistente, sendo um desafio o texto que nos fala sobre a carreira, num percurso entre a estafada pergunta “que queres ser quando fores grande?” e a pertinente questão “agora, que és grande, queres ainda ser o quê?”, alerta que obriga a um compromisso com a formação constante, com um aprender permanente, atitudes essenciais para se ultrapassar fenómenos como a incerteza e a complexidade que nos invadem.

Questões da literatura e da leitura passam por outros capítulos, onde surge evidente a necessidade de um pacto entre escritor e leitor em termos de plausibilidade do narrado, sem que a ficção vire mentira e aniquile o pensamento crítico do leitor, e de valorização da palavra, esta perspectivada também no longo trajecto feito entre princípios como a “palavra de honra” e a necessidade de se “pôr por escrito”, ambos capazes de garantir, em tempos diferentes, a saúde do compromisso. É de literatura e do seu papel que se fala quando é evocado o tio que deixou umas memórias intituladas “Todos Vivos”, onde é dada vida às personagens das suas leituras; é de literatura e dos princípios que se fala quando Natália Correia, convidada para falar sobre estética e ética, vira costas porque nem uma nem outra têm de ser tratadas sob a carapaça do chamado “intelectual”; é de literatura e da sua universalidade e representações que se fala quando se recorre a Jorge Listopad para evocar a presença do teatro nas cadeias, formas de ver e de pensar outras vidas. E é também de leitura que se fala pelas muitas referências a textos de outros que povoam estas crónicas.

As perguntas andam também pela área da educação e da escola, sobretudo na concepção de uma carta que poderia ser dirigida a Paulo Freire a glorificar a escola pública, motivo para destruir sistemas como o da exclusão ou o de “dar a matéria” e para construir um tempo e um espaço propícios para “desenvolver o máximo das capacidades de cada um dos seus alunos e de cada uma das suas alunas, por forma a que uns e outras possam participar activamente na vida pública - política, económica, social e cultural.” E, a propósito da escola, a defesa de uma utopia: que “o dia de abertura das aulas, em cada ano, deixe de se apresentar como tempo de conflito político, partidário, reproduzindo sempre o mesmo desinteressante rosário de argumentos esgrimidos a favor ou contra o sucesso do arranque, e, em vez disso, seja um dia de festa nacional: o dia do regresso às aulas.” Utopia deve ser, uma das nossas utopias, por amor à escola e ao saber ser, mas que só será plena se pensarmos na forma de a realizar...

Socorramo-nos de um outro texto de Álvaro Laborinho Lúcio que bem podia integrar este A Vida na Selva - publicado em 2023, em reduzida tiragem, O Velho e a Escola (Entre o Ensaio e a Ficção) (editora Nova Mymosa), traz-nos uma personagem, o Velho, de quem nos é dito, logo no início, que procura “projectar o ser humano para fora da indiferença, da apatia, da desistência e do desinteresse, em suma, da banalidade”. Será que se consegue chegar aí numa escola que valoriza palavras como aquelas que indignavam o Velho - “sucesso, exigência, laxismo, disciplina, indisciplina, desobediência, mérito e tantas outras”? E porque não substitui a escola, a sociedade, essa semântica por outra que contemple termos como “arte, democracia, direitos humanos, cidadania, conhecimento”? Conclui o Velho: “Estas, sim, são palavras que navegam, que traçam novas rotas, que enchem de valor o terreno onde prevalece a força da ética e da liberdade”.

Por todo este conjunto de ensaios construídos sobre histórias, vividas ou inventadas, corre uma pergunta fundamental — que sentido para a vida? Esse é o desafio permanente, mas obrigatório. E apetece, de novo, repetir o que fica dito no posfácio de A Vida na Selva, construído por Álvaro Laborinho Lúcio, leitor do que escreveu: estes textos foram relidos e reaparecem “sempre com o fito de chamar e de juntar vizinhos.”  Para que não tenhamos como resposta, no fim do trajecto, uma desculpa semelhante àquela que a mulher deu ao homem seu vizinho para explicar o porquê de nunca se terem conhecido antes — “Pudera! Éramos vizinhos!” O desafio está lançado...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1291, 2024-05-02, pg. 10.


Álvaro Laborinho Lúcio e a pergunta fundamental (1)



No tempo da pandemia, um homem, que vivia sozinho em modesto apartamento, descobre, por motivos de arrumações, a viola há muito abandonada; tenta rearrumá-la debaixo da cama, mas o espaço vazio não o permite; o homem pega na viola e começa a lembrar os acordes há muito silenciados; insiste e a música leva-o ao canto; lembra-se de compor; canta e surpreende-se porque há uma voz feminina da vizinhança que o acompanha; um dia, ao abrir a porta que dava para a escada, vê a vizinha, adivinhando-lhe o rosto, então tapado por máscara; a cena repete-se no dia seguinte e ambos acabam por viver uma paixão. Com o fim da pandemia, a história sofreria alterações - “Tudo voltaria a ser como dantes. Era a peste que voltava. António arrancou a máscara e perguntou: ‘Como foi possível? Tanto tempo aqui, sem sabermos de nós?’ E a mulher, de máscara posta, respondeu: ‘Pudera! Éramos vizinhos!’”

Esta é uma das histórias que corre no mais recente livro de Álvaro Laborinho Lúcio, A Vida na Selva (Quetzal Editores, 2024), obra apresentada em quatro partes, todas intituladas numa relação com o itinerário que se nos apresenta como vida — “Tempos de nascer”, “Tempos de voar”, “Tempos de lutar”, “Tempos de partir”. “Tempos”, sempre no plural, porque não são determinados ou calendarizados, porque não são únicos, porque é a diversidade de uma vida que vai arrumando os eventos que a fazem de acordo com a importância que eles têm; ainda assim, pode-se entender a sequência que envolve o trajecto entre o “nascer” e o “partir”, passando pelo “voar” e pelo “lutar”, fases que implicam despertares, aprendizagens, acções, despedidas, sempre envolvendo os outros, aqueles com quem se trilha o caminho ou que encontramos no itinerário.

São 19 crónicas (em que se mistura memória, ficção e reflexão) e um prefácio e um posfácio, tudo na conta do autor, que começa com uma confissão, simultaneamente provocação: “não gosto de prefácios”, abrindo excepção para os que são de autor “ou os grandes pórticos, aqueles que são já mais oferta do que simples convite”, preferência que desenvolve através da metáfora do olhar, ao estabelecer a distância que vai entre a “espreitadela”, momento furtivo, e o acto de “espreitar”, forma de “procura permanente” que aproxima quem escreve e quem lê, que valoriza o exercício da palavra na sua relação com as formas de estar no mundo e na vida, o pensamento livre e crítico, a dignidade da utopia, esse espaço irrealizável que vive sempre connosco. Saltando para o final do livro, surge um posfácio, tempo que deveria ser feliz para o leitor (apesar de ser também o momento que anuncia a sua separação de todo aquele manancial de dizeres), porque deveria competir ao leitor ser o autor do posfácio, forma de releitura e de completamento da tarefa de escrita. Um desafio, pois. Mas é também o texto em que o autor explica que olhou para os dispersos e inéditos, releu-os e reorganizou-os, com um objectivo e uma pergunta: “Sempre com o fito de chamar e de juntar vizinhos. Como eu gostava que eles se chegassem. E, se assim for, que melhores vizinhos para quem escreve do que os seus leitores?”

Este livro, predominante na área do pensamento e do ensaio a partir de histórias vividas e, por vezes, condimentadas com a ficção, deixa perguntas, convida o leitor à inquietação, à saída do desconforto da normalidade, a viver a utopia dos sonhos e da procura de respostas, sugerindo sempre outras perguntas. É curiosa a forma como um texto intitulado “Autobiografia”, que poderia ser um recanto de certezas por relatar o passado, o vivido, se torna num olhar sobre a quantidade de vezes que se nasce - “Ninguém nasce de uma vez. Nascemos aos poucos, pelo tempo fora. Vamo-nos juntando à medida que nascemos. Vamo-nos desconjuntando à medida que vivemos.” E há a narrativa de episódios escolares desgastantes pelos maus prenúncios; o acompanhar o pai, trabalhador nos correios; as vivências juvenis na Nazaré; o compromisso cívico no tempo de estudante e da crise académica de 1962; a carreira pela magistratura e o aprender a julgar; o “tempo novo” aprendido nos Açores; os caminhos da escrita; as lembranças da família, sobretudo do avô, figura que espreita em várias crónicas. 

A vida feita de perguntas vai encontrar eco no capítulo “Nossa Senhora das Perguntas”, um quase cântico à padroeira que intrigava a criança quando via o avô, homem “sem missas, sem preces, sem visitas clericais”, a curvar-se perante os campanários da igreja do Sítio, na Nazaré, tirando o chapéu e venerando o espaço, como se se verificasse um encontro do homem com a santa padroeira ou da santa com o homem... uma evocação que se conjuga com uma outra reflexão, sobre o voo, onde se encontra o Velho da aldeia que gosta das perguntas das crianças, porque elas determinam que voar é muito mais importante quando acontece no tempo do que no espaço - “Quem voa no espaço é levado por outros, voa com asas que são asas de outros. (...) Quem voa no tempo voa para dentro. Para a lonjura e a imensidão onde habita o humano e de onde brota o poema.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1287, 2024-04-24, pg. 10.


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Idalina Veríssimo traz Sebastião da Gama aos mais novos



Começa com dois versos do poema “Madrigal”, escrito em 7 de Outubro de 1946, e conclui com a primeira quintilha do poema “O Sonho”, redigido em 1 de Setembro de 1951. Entre os dois excertos, desenrola-se a história de Sebastião, o Menino que Nasceu Poeta, criada por Idalina Veríssimo e ilustrada por Cristina Arvana (edição da Junta de Freguesia de Azeitão), obra que visa apresentar o poeta aos mais novos quando passa o seu centenário.

Tudo se passa entre três personagens — a avó Idalina e os netos Alice e Afonso —, a que se associa a figura de Sebastião da Gama, que ganha vida a partir de uma escultura, numa criação onde o fantástico espreita: “A Alice, sempre muito irrequieta, quis logo mexer na boina do homem da estátua, que lhe sussurrou: ‘Está quieta, Alice! Estás a fazer-me cócegas!’ A princípio, a Alice pensou que o homem da boina era mágico, que tinha poderes. Nunca tinha ouvido uma estátua a falar!” A partir desta forma de meter conversa, a figura de Sebastião da Gama anima-se e serve de cicerone ao trio familiar, num percurso por Azeitão e Arrábida (Portinho e Convento) e pela sua biografia.

Tem, assim, o leitor a possibilidade de conhecer um quase-roteiro do poeta com início nas casas onde nasceu e onde passou a adolescência, com um olhar para a casa que era a da amiga e depois namorada, invocando o namoro “à janela”. Depois, é o caminho para a Arrábida, com a personagem a recordar que “conhecia todos os segredos da serra” e que transportava sempre consigo um “caderno, onde escrevia o que via e sentia”, em caminhadas que tinham a companhia da cadela Dina.

Perante a vista sobre o Sado, o poeta ensina as crianças, suas companheiras de percurso, a olharem o mar e as flores, numa atitude que também pretende ser pedagógica para os jovens leitores. É no Alto do Formosinho que surge o contacto mais sentido com a Natureza — o olhar para as cores do céu, do mar e da serra; o som das aves; o aroma proveniente das flores; o toque do ar inspirador —, ambiente propício à criação poética. A conversa ruma, depois, para a aprendizagem da identificação das plantas e para o relembrar do episódio do ramo de noiva feito com alecrim apanhado na serra que aconteceu no casamento de Sebastião com Joana.

Uma passagem rápida pelo Convento é o ponto que antecede a chegada dos quatro protagonistas ao Forte de Santa Maria, espaço histórico e local afectivo para o poeta, que explica também a razão de ser do título do seu primeiro livro, Serra-Mãe.

A caracterização do poeta vai ganhando alegria pela aproximação aos jovens que o acompanham, todos sorrindo para a vida e para o momento e tendo as crianças a oportunidade de perceber a necessidade do recolhimento e do silêncio como elementos importantes para o pensar e para a produção de um poema.

O final da história acontece com o regresso a Azeitão e com o retomar do tempo, momento em que Sebastião volta a ser estátua. Nas mentes de Afonso e de Alice fica a intensidade da experiência que ambos vão partilhar com a família e, no dia seguinte, na escola — e é o momento para o final: “A Alice e o Afonso gostaram muito de aprender a história a história deste poeta azeitonense e convidam-te a ti, aos teus amigos, aos teus pais e professores, a conhecerem quem foi Sebastião da Gama. Que nunca fique esquecido, nem a sua história de vida, nem a sua poesia, e muito menos o seu Amor à nossa Serra da Arrábida.”

Dar a conhecer a história local aos mais jovens tinha sido pretexto para outro livro de Idalina Veríssimo, Afonso à Descoberta de Azeitão, de 2015, aí aparecendo já a referência a Sebastião da Gama, mas de forma muito sumária. Com a obra agora publicada, enriquecida com finas cores e traços de aguarela, em retratos que bem captam a paisagem e os lugares, o público juvenil tem ao seu dispor a biografia da mais importante personalidade azeitonense ligada à cultura portuguesa, num relato leve e muito ligado à identidade local, que consegue também ensinar a olhar o mundo e a transformar a vida em motivo de poesia.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1283, 2024-04-18, pg. 10.

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Azeitão nos poemas de Sebastião da Gama


 

Sebastião da Gama tinha o hábito de, no final de cada poema, localizar e datar o momento da sua escrita - em 695 poemas conhecidos (não considerando as 239 quadras), há 137 em que não surge a referência ao local de criação e 53 que não estão datados -, prática que parece associada à diarística, tanto mais que, em alguns casos, menciona o local quase exacto do sítio em que escreveu - uma larga maioria dos poemas surge a partir da “Arrábida” (aparecendo referências mais precisas a Alto da Mata, Convento, Lapa de Santa Margarida e Cruzeiro, Jardim de S. Pedro de Alcântara, Pocinho da Torre, Estelita, Olivalinho, Bom Jesus, Alpertuche), mas também os há produzidos em Lisboa, Parede, Azeitão, Paris, Estremoz, Coimbra, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Castelo de Vide, mencionando uns poucos terem sido escritos “Algures” e outros durante um trajecto, como “de Cacilhas a Azeitão”, “em frente a Coimbra”, “comboio do Douro”, “entre Azeitão e Setúbal”, “trajecto Azeitão - Cacilhas”. Apenas um menciona o espaço caseiro - “nossa casa”, no poema “Largo do Espírito Santo, 2 - 2.º”, escrito em Estremoz, trazendo para título a morada onde Sebastião da Gama e a esposa, Joana Luísa da Gama, viviam.

Embora a Arrábida integre a freguesia de Azeitão, a verdade é que os dois espaços acabam por funcionar como comunidades próprias, tendo a ida do jovem poeta para a Arrábida por razões de saúde sido a responsável pela localização de escrita dos poemas maioritariamente no território arrábido, onde a família vivia. Azeitão, incluindo Vendas, Vila Nogueira e Aldeia Rica, são locais que aparecem como espaços de escrita de cerca de uma trintena de poemas, ainda que a temática ou as referências locais não perpassem por todos eles.

Entre as mais de duzentas quadras que Sebastião da Gama escreveu, há três que referem Azeitão - uma, dedicada à beleza das azeitonenses, “tão belas, tão airosas” que fazem “chorar ‘té as próprias rosas”; outra, dando a ideia de que a terra é um jardim, onde é “cada moçoila, uma flor”; finalmente, a terceira apela às jovens de S. Simão para terem cuidado com o seu coração. Estas quadras, enaltecendo a juventude, cruzam-se com os viras de Vila Nogueira e de S. Simão, datados de Dezembro de 1941 e de Março de 1942, respectivamente: no primeiro, são evocados os encontros de namorados junto da Fonte dos Pasmados, as promessas não cumpridas, as separações por ida do rapaz para a tropa ou por haver troca de par; no segundo, a pretexto de um casamento, há o repicar dos sinos e a garantia de fidelidade dada pelo Menino da Senhora da Saúde, cuja festa é desejada pelo ambiente festivo (missa, sermão, foguetes, procissão, vinho e arraial). A propósito do vinho, é comovente o soneto de Dezembro de 1942, que remata — aquando da distribuição de prendas pelo Menino Jesus —  elogiosamente para os néctares azeitonenses: antes de se retirar dali, depois de cumprida a sua tarefa, o Menino decide “pra Seu divino pai, mai-los anjinhos, / levar o saco cheio de bons vinhos / moscatéis lá das cepas de Azeitão.”

A dimensão da religiosidade torna-se evidente nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946), que acompanham a peregrinação desde Azeitão até ao Convento e volta, demonstrando as quadras desta composição a manifestação da fé dos devotos azeitonenses e narrando o contentamento do regresso, em comunhão com a imagem da Virgem a quem imploram protecção.

Prova do afecto a Azeitão é um poema que tem o nome da terra, constituído por quatro quadras, havendo a separar os versos a palavra “Azeitão”, quase como se de um eco se tratasse. “Terra santa ond’ eu nasci” é a primeira afirmação dedicada a Azeitão, nomeada “beleza sem igual” ou “brilhante refulgente”, havendo ainda espaço para a evocação do romance de Pedro e Inês e para afirmar o orgulho de, ali, ter visto o dia pela primeira vez, concluindo o poema com uma declaração de amor: “Só quem não te conhecer / Azeitão / não te ama, não t’ elogia.”

Não menos poética imagem é trazida pelo soneto “Lenda de Azeitão”, de Janeiro de 1942, em que o leitor contempla “a bela deusa Arrábida”, filha de Zeus, a mirar a luz do dia. Num momento de afago dos cabelos, algo acontece que a leva a gritar de aflição, “pois lhe caíra aos pés, tão linda, a Azeitão / - da sua cabeleira a jóia mais brilhante.” O recurso à mitologia para enaltecer a importância do local, usa-o também Sebastião da Gama para mostrar o Portinho da Arrábida, prenda que teria sido ofertada a Vénus, no seu aniversário, por seu pai, Jove, a conselho de Apolo. Mas o território da Arrábida, distinto do de Azeitão, é outro peculiar terreno do poeta no caminho da “Serra-Mãe”...

Vivendo na zona do Portinho, Sebastião da Gama exprimiu fortemente o seu apego a Azeitão, tomando como pretexto não só a beleza natural, mas também o facto de ali estar a sua raiz e de ali, como confessa no soneto escrito a propósito da escola primária, de Novembro de 1941, ter bebido “o leite do Saber”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1277, 2024-04-10, pg. 7.


OBS.: Os poemas referidos ao longo do texto são, na sua maioria, inéditos. Serão brevemente publicados na obra O Inquieto Verbo do Mar, título que reúne a obra poética de Sebastião da Gama, incluindo a publicada em livro, 70 poemas dispersos e 290 poemas inéditos (Assírio & Alvim / Porto Editora).

 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Imagens contra a estupidez



Vinte anos depois de Maria Severa Onofriana, conhecida como “Severa”, ter falecido (quando contava 26 anos, em 1846), um autor dramático seu contemporâneo, Ernesto Biester (1829-1880), defendeu a opinião de produzir uma peça trazendo-a para protagonista. Se houve quem o apoiasse, também existiram aqueles que, à luz da moralidade pública, condenaram a ideia, argumentando, segundo Júlio de Sousa e Costa, que “pôr em cena a vida de uma mulher perdida chamaria o pecado sobre as cabeças do autor, actores, actrizes, ponto, espectadores, toda a gente, enfim, que fosse deliciar-se com as cenas copiadas da Mouraria...” Sousa e Costa relata este episódio na obra Severa, biografia publicada em 1936, rematando com o seguinte comentário: “Toda a vida há-de haver gente estúpida e é isso que faz com que o mundo se torne imensamente divertido.” A verdade foi que os tais defensores moralistas foram fortemente satirizados por causa desse “cuidado” moralista, o que justificou a observação de Sousa e Costa.

Mesmo retirando o comentário do contexto que o originou, o que nele é dito mantém a sua validade. Que o digam as cenas do quotidiano a que vamos assistindo, nos mais diversos circos e palanques, a exigirem que tenhamos nervos de aço ou a nossa gargalhada perante o ridículo... O aflitivo, no panorama, é que a estupidez se sabe afirmar sem nada recear, num jogo de palavras, num esgar de risos e de sobranceria, num gesticular e vociferar com desaforo, numa defesa de ideais em que não dá para acreditar - a geografia dos acontecimentos recentes, viremo-nos para ocidente ou para oriente ou comecemos aqui mais perto, torna evidente a pujança e a matreirice da estupidez.

Eugénio Lisboa, num texto inserido no livro Poemas em tempo de guerra suja (2022), retratou-a em grande tela: “A estupidez é a mercadoria / mais bem distribuída deste mundo: / ela veste-se de demagogia / ou do que quer que seja de imundo. // A estupidez é um grande muro, / que oferece ao inteligente / a resistência do escuro duro, / que se ergue forte e prepotente. // Ela exibe estrelas de general / e ri-se à grande dos que são sábios: / permite-se, à vontade, ser boçal, // saindo barbaridades dos seus lábios. / A estupidez sabe prevalecer / e sabe, sobretudo, não temer.”

E será sempre uma luta inglória o diálogo com a estupidez, mesmo que se invoque a competência democrática ou a pluralidade para tal, pois até valores como a vida parecem insignificantes perante a estupidez. Foi Ruben A. (1920-1975) quem o disse no terceiro volume de O mundo à minha procura (1968): “Para a estupidez, não há argumentos, por mais inteligente que seja o einstein. (...) Um ditado alemão define perfeitamente esta conjuntura: Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” E, num outro passo da mesma obra, relacionou a estupidez com a tragédia: “Falar com um ser estúpido que tem opiniões, este é o drama da existência.”

Há aprendizagens que vamos fazendo nestes percalços que a vida proporciona, chegadas, muitas vezes, depois de percursos longos. Uma das primeiras coisas que ouvi de um amigo de longa data, bem mais velho do que eu, foi a recomendação de não contra-argumentar com a estupidez, porque, no final, é ela quem ganha, não por mérito do que apresenta, mas por sabotagem da realidade, recurso ilusório e atraente para incautos. Numa crónica incluída na obra O país do solidó (2021), J. Rentes de Carvalho, um pensador crítico dos quotidianos, deixa o aviso: “A estupidez é contagiosa e demasiadas vezes é ela quem vence.”

E a conclusão torna-se óbvia: porque não investem os cientistas numa vacina contra a estupidez? O mundo e a vida seriam mais fáceis, mais felizes, menos enganadores, mais de todos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1272, 2024-04-03, pg. 10.


quarta-feira, 27 de março de 2024

Motorizações nos barcos sesimbrenses lembradas por João Aldeia



“Para além da materialidade das embarcações, das velas, dos apetrechos de pesca, dos motores, das sondas e radiotelefones, o património cultural marítimo é constituído pelo modo como se utilizavam esses equipamentos: como se velejava, como se remava, como se pescava, e ainda pelos saberes, crenças, rituais, tragédias, humor, etc.” Esta afirmação, justifica-a João Augusto Aldeia com a necessidade da criação de um Museu Imaterial do Mar de Sesimbra, projecto para o qual o seu livro Primeiras motorizações de embarcações de pesca de Sesimbra (1926-1932) (ed. Autor), há dias apresentado, é um digno contributo, resultante de passeio aturado pelos arquivos sobre as embarcações e de testemunhos recolhidos na memória daqueles que, directa ou indirectamente, participaram na faina sesimbrense.

Sesimbra é uma das terras que integram um roteiro camoniano feito a partir d’ Os Lusíadas, obra que a menciona no momento em que, no canto III, Vasco da Gama conta a história de Portugal ao rei melindano, evocando as conquistas de Afonso Henriques e referindo-se à “piscosa Sesimbra”. Essa adjectivação, resultante da abundância de peixe, foi o marco de um percurso que, no século XX, encontrou o revés, levando o pescador local a reinventar a profissão até aos limites do possível, ao mesmo tempo que se gera a ideia de em Sesimbra existir um dos maiores portos de Portugal - criticamente, anota João Aldeia: “pode ser que o seja estatisticamente, mas não é com o peixe das suas águas nem com a qualidade que outrora lhe deu prestígio.”

Mesmo por estas contingências que o passar dos tempos trouxe, vale a pena organizar a memória, falando dos marítimos, dos carpinteiros navais e dos mecânicos que deram identidade ao local através da arte da pesca. Nessa tarefa, valoriza este livro apontamentos sobre essa arte, pugnando pela divulgação da sua história e avançando com possibilidades interpretativas para a construção dessa mesma identidade - curiosa é a aproximação semântica que o autor faz entre a expressão “vela de espicha” e a designação Espichel, que dá nome ao cabo, mostrando mesmo a sobreposição da vela com a carta orográfica local.

Assunto como a motorização das embarcações sesimbrenses, iniciada em 1926, leva-nos a um olhar sobre as adaptações feitas - passar dos remos para o motor, publicitar os equipamentos, alterar aspectos das embarcações (no cavername, por exemplo), novas técnicas a dominar, diferentes graus de especialização nas companhas, formas de resolver problemas resultantes da transformação (como o da interferência dos motores sobre a agulha das bússolas, por exemplo), novos desafios de segurança (não escapa à memória o incêndio a bordo da barca “Gemeniana”, em 1928, que usava um motor de automóvel adaptado, e consequente naufrágio da mesma), formas de abastecimento de combustível, entre muitas outras.

João Aldeia põe o leitor em contacto com mais de duas dezenas de protagonistas da história do tempo abrangido, actores neste processo de motorização, nascidos entre 1869 e 1905, extremos ocupados por dois membros da mesma família, pai e filho: Zózimo das Chagas e Zeferino das Chagas, respectivamente. Quanto às embarcações, na ordem da meia centena, são apresentadas no seu breve historial, com nomes ricos do ponto de vista simbólico - com predominância dos nomes femininos -, havendo uma delas, “Luz do Calvário”, que teve a sua companha imortalizada na literatura pela pena de Raul Brandão, em viagem de Fevereiro de 1923, relatada na obra Os Pescadores (publicada nesse mesmo ano e com nova edição no ano seguinte).

O livro de João Aldeia, que se percebe ser resultado de um empenho pessoal e emotivo (dedicado ao pai, que foi serralheiro mecânico e trabalhou para a frota pesqueira local), conta uma história que é longa e cheia de coisas a descobrir, numa linguagem acessível, que permite o (re)encontro com rostos que fizeram Sesimbra e chama a atenção para um sector importante nas dinâmicas locais que tem sido objecto de pouco estudo, não só em Sesimbra mas também na região. A motorização dos barcos é o pretexto deste estudo, mas é também uma chamada de atenção para a memória.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1268, 2024-03-27, pg. 2.

 

quinta-feira, 21 de março de 2024

Patrícia Reis e uma história em Sesimbra

 


“Agora já não posso perguntar” é uma frase que comporta diversos olhares: a dimensão do tempo entre um presente e o passado; uma certa nostalgia ou lamento pelo confronto com a impossibilidade permanente; a necessidade de se perguntar perante os mistérios que a vida e o mundo apresentam. Todas estas linhas se cruzam na narrativa a que a frase dá o título, alimentando o livro Sesimbra, de Patrícia Reis, o primeiro da colecção “Portugal” (Centro Atlântico, 2024), história povoada também com fotografias devidas a Libório Manuel Silva, numa combinação que respeita o propósito da série: “o mesmo horizonte para a ficção e a realidade, em que criatividade literária e riqueza fotográfica mergulham na nossa geografia.”

A história vive com as memórias de um narrador de 59 anos, que aproveita o que aprendeu para dar imagem da família, dos afectos, das crenças, das convicções, da terra, das vivências desde a infância, num percurso em que não faltam os familiares pescadores, a paixão futebolística pelo Clube Desportivo de Sesimbra (ainda que designado pelo seu anterior nome, Ases Futebol Clube, devido a uma ligação familiar), o caminhar pela vila, uma certa identidade da vida local e alguns momentos de humor (como o da justificação apresentada para a opção quanto à cor da viatura 4L dada por Nicolau, o pai do narrador).

As lembranças da personagem principal recuam aos seus 9 anos, tempo de 1974, marco cronológico importante para quem foi assistir à revolução em Lisboa, levado pelo pai e pelo tio, ambos numa euforia de vitória que ajuda à decisão de partirem de madrugada para serem testemunhas do momento histórico - a criança pouco entendia, mas ficou-lhe gravada a frase do pai para o tio, de incentivo e de pressa: “Foi hoje, está a acontecer agora mesmo, trouxe o carro, vamos.” Perplexo fica o jovem: “Naquele tempo não se ia a Lisboa por uma razão qualquer, só por algo importante, uma consulta médica, alguém de família que chegava de comboio, raramente de avião, só tínhamos uns primos que podiam vir de avião, viviam nos arredores de Paris, mas já não os víamos há uns anos.” O mistério para a viagem desvanecia-se lentamente, ainda que o pai explicasse: “Vamos a Lisboa ver a revolução. (...) Vamos deitar estes gajos abaixo de uma vez por todas.”

A revelação da importância deste momento vai, depois, sendo dada pela mãe, Delmina, mulher reservada, mas arguta e sensível para transmitir ensinamentos e valores - quando, em Maio de 1974, a televisão informava sobre o fim do processo das três Marias, a mãe comoveu-se e explicou ao jovem: “Quando uma mulher é julgada por algo que não fez é como se fôssemos todas julgadas, todas as mulheres.” Têm as mulheres papel importante nesta história - além da mãe, também a irmã mais nova do narrador, Rosa, construtora da sua autonomia, desvinculada da terra mas não da família, que optou pela vida na capital; e ainda Susana, professora, que, num percurso inverso, vem de Lisboa para Sesimbra, para construir uma história de paixão e para sentir a família, “o melhor porto de abrigo de todos”, como dizia Nicolau.

“Eu fui ver a revolução, é verdade, mas mantive o alívio de ter regressado a Sesimbra. E a vida correu como correm todas as vidas. Com as dificuldades de sempre, as guerras da malta da pesca, a Câmara Municipal que não sei o quê, as festas, o dia do santo no 4 de Maio... a lenda que me perseguiu na escola.” Personagem fiel à sua terra, o narrador faz passar algumas observações que dão relevo à identidade: a confiança entre as pessoas (“hoje vivo numa aldeia do concelho, com o mar à minha beira, vou comprar legumes ao meu vizinho, conheço as pessoas pelo nome. Se sair e não tiver dinheiro, por ter deixado a carteira esquecida num outro casaco, não é uma questão, vá-se lá embora, paga depois, num outro dia, quando der jeito.”); a proximidade e o sentido familiar (“Sesimbra também é isso, famílias que se prolongam, que se mantêm agarradas como correntes de ferro de uma âncora”); a epopeia da vida (“as histórias do mar e das gentes de Sesimbra passam de geração em geração”). Pelas memórias, passa também o sentido da aprendizagem dos afectos - “o meu pai olhava para a minha mãe com a devoção dos amorosos e isso deixou uma marca indelével em nós” -, valores que se reproduziram na personagem que conta.

Está o leitor perante uma história bonita, que se passeia pelos contornos entre a vila e o Espichel, alimentada de olhares e de dizeres, de proximidades, de espaços e de figuras com que nos podemos cruzar, valorizando as histórias locais e um olhar poético sobre a vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1263, 2024-03-20, pg. 10.

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (4)

 


A motivação principal das colectâneas de rimas de Miguel Caleiro eram as Festas da Arrábida, também ocasião para que fosse editado um opúsculo com os seus versos, cuja temática principal era a ida ao Convento da Arrábida para essa celebração, havendo também cantigas, que diferiam de ano para ano, motivadas por razões autobiográficas ou por questões sociais - por exemplo, na edição de 1916 dos Versos em honra das antigas Festas d’ Arrábida, Miguel Caleiro escolheu para a linha autobiográfica duas cantigas dedicadas aos pais e duas cantigas que tomam o poetar como tema, particularmente uma em que esboça o seu auto-retrato; já a imagem da época, questão importante pelas implicações sociais, políticas e históricas, foi ocupada com duas cantigas sob o título “Despedida para a Guerra”, relatando o momento da separação familiar dos que eram recrutados para ir “auxiliar o francês”.Retomando a edição do início da década de 1920 que nos tem servido de base, vale a pena olhar para umas loas à Senhora da Arrábida, vinte e oito quadras organizadas em quatro partes - “Saída de Azeitão”, “Chegada ao Convento”, “A despedida da Serra” e “Chegada a Azeitão”. Nelas, o leitor acompanha, no momento da saída, a ansiedade dos romeiros pela partida para a festa, o trajecto da berlinda que acompanha a Senhora, a despedida que o povo faz da imagem, o sinal de partida dado pelo sino da igreja; já no Convento, assiste-se aos momentos de devoção perante a “Rainha do Céu”, à contemplação da grandiosidade do cenário natural, à reza a pedir a bênção e protecção para os romeiros; o momento da despedida é feito sob o signo da oração, pesando também a emoção “de tão triste apartamento”, pois era chegada a hora de regressar à vila; no último quadro, da chegada a Azeitão, a comoção envolve os peregrinos, no meio dos repiques sineiros, com aqueles que ficaram a manifestarem o contentamento, pois era “chegada a santa Imagem / cheia de graça e louvor”, com um momento intenso de oração no final.

A ideia das loas para este momento festivo manteve-se pelos tempos. E, se algumas destas quadras se repetiram nas edições de vários anos, em 1946 (tinha Miguel Caleiro falecido há 11 anos), uma inovação surgia ao serem publicadas as Loas a Nossa Senhora da Arrábida, texto conjunto de Miguel Caleiro e de Sebastião da Gama (que tinha 22 anos à época e apenas um livro publicado). Das 28 quadras que constituem esta composição, organizadas nos mesmos quatro quadros, há oito que constam nos Versos de Caleiro do início da década de 1920. Não há a certeza de que todas as outras sejam de Sebastião da Gama, ainda que, em algumas, se consiga perceber a sua marca nas imagens que recorrem à Natureza, não se desconhecendo também o jeito que o jovem poeta tinha para a construção de quadras de gosto popular.

Esta junção dos dois poetas azeitonenses na publicação das Loas (que foram republicadas em 1966 e em 1996) alimenta também a admiração que Sebastião da Gama tinha por Miguel Caleiro - em Março de 1942, tinha Caleiro falecido há sete anos e estava Sebastião prestes a fazer 18 anos, o novel poeta azeitonense compôs um soneto em honra do antecessor, com a nota “para a sua campa”, assim retratando a memória: “Aqui repousam cinzas, pó e nada: / despojo humilde de quem foi alguém / e agora, com certeza, no Além, / maneja a Lira, a Lira bem-fadada. // Não vistes ‘inda a terra descuidada / que a torga, o alecrim, o lírio vêm, / a violeta, o malmequer também / tornar a mais formosa e delicada? // Teu estro foi, ó vate, o campo inculto / aonde foi nascer e tomou vulto / jardim tão perfumado, tão mimoso! // Teu corpo aqui, Miguel! Mas lá nos céus / eu bem te vejo a recitar a Deus / teus versos - flor’s de tom o mais vistoso!”

Que bom gesto de memória seria o de se conseguir uma compilação dos versos que Miguel Caleiro compôs, tendo como abertura este soneto de Sebastião da Gama, que constrói a feliz ideia de transformar o céu num espaço em que os poetas recitam versos para Deus!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1259, 2024-03-13, pg. 9.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Os Versos de Miguel Caleiro (3)

 


Nos Versos de Miguel Caleiro, aparecidos cerca de 1920, passa também o sentimento da amizade, vivido numa festa feita em honra de Armando Barata, um seu amigo, sendo o poeta impressionado pela beleza do evento, tempo em que “nos passa a dor / entre as almas donairosas / que, fiéis e piedosas, / escutam a poesia” que lhes é oferecida pelo cantador. Os poemas são equiparados a “ramalhete de apreço”, constituído por dálias, verbenas e açucenas, imagem que serve também para elogiar a assistência - “são as flores que vejo / doçuras que amam poetas”. A cantiga (com uma quadra como mote e quatro décimas) conclui com a demonstração da alegria festiva e o agradecimento do poeta: “Ao ver tanta animação / nesta festa de amizade, / toda a alegria me invade / de raríssima confusão. / Perante a reunião / que escuta minhas glosas, / com palavras especiosas / são os mais gratos deveres, / elevando os vossos seres / como alfim mágicas rosas.”

Outra cantiga com o mesmo formato da anterior recorda uma assustadora tarde de inverno, em que é registado o ambiente sentido, oscilando entre planos gerais e planos de pormenor - a aflição dos camponeses que não podiam atravessar a ribeira para acudir à família, o tom assustador das trovoadas, os rebanhos assustados em fuga, as árvores partidas e arrancadas pelo vento, os telhados destruídos, o relampejar feroz, as águas a descerem pela montanha, a ponte e a azenha destruídas, a noite avassaladora, a morte do moleiro e do seu filho. A quadra que dá o mote anuncia bem a calamidade que se descreve: “Era uma noite de inverno; o céu parecia um inferno. / Estavam os astros em guerra. / A ribeira mal sustinha a grande cheia que vinha / pelas vertentes da serra”.

Duas cantigas assumem um pendor marcadamente autobiográfico, revelando alguns traços sobre o poeta destes Versos. A primeira, demonstrando a sua origem rural e modesta, o estatuto de poeta popular e de cantador que para si reclama e o reconhecimento do seu nível cultural, sujeita-se ao mote “Miguel Fernandes Caleiro, / um poeta camponês, / não pode cantar o fado / em correcto português”. A cantiga retrata o percurso do autor: nascido “numa aldeia de Azeitão”, em tempo de dificuldades sentidas por uma “humilde geração”, numa família sem posses financeiras para dar melhor formação ao filho. Na segunda décima, já o poeta valoriza o seu percurso, enaltecendo o trabalho, a honra e o autodidactismo - “Eu fui como uma pobre flor / pelo vento açoitada / e, herdeiro da enxada, / aprendi a cavador. / Nasci para trabalhador / no meio da honradez. / Em mim, não há altivez, / eu só canto irmãmente, / mas têm na vossa frente / um poeta camponês.” Prossegue a cantiga, manifestando a alegria por aquilo que faz, para terminar com uma evocação da figura da mãe e a afirmação do que entendia ser o poeta popular: “Minha mãe santo afecto / chorou ao ver-me crescer, / sem apenas aprender / as letras do alfabeto. / Assim, sou analfabeto, / mas não semeio a rudez. / E vós, povo que me vês, / queiram-me aqui desculpar, / porque eu não sei cantar / em correcto português.”

A segunda cantiga de marca autobiográfica começa por glorificar a poesia, associando-a à capacidade emotiva: “Os versos que ides ouvir / nesta singela canção / são flores que nascem d’alma, / que brotam do coração.” Assemelhando os poemas que compõe a um “raminho de flores”, confessa o tom pessoal ao considerá-los “rimas do meu sentir”, garantia que vai dando ao longo do poema, terminando com a assinatura que reafirma o seu estatuto e a sua simplicidade: “São canções de um camponês / que não sabe ler nem escrever, / por isso não podem ter / grande beleza talvez. / Foi o Caleiro que as fez / sem a metrificação. / P’ra lhe oferecer elas são / como desfolhadas rosas, / as minhas pobres glosas / que brotam do coração.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1254, 2024-03-06, pg. 10

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (2)

 

 

Os Versos de Miguel Caleiro publicados por 1920, inserindo uma fotografia em que estão o seu autor e a afilhada Maria da Saúde em gesto de escrita do que está ouvindo, contêm onze poemas, maioritariamente influenciados por características locais (as Festas da Arrábida, a paisagem, circunstâncias de vizinhança), mas também pelo registo autobiográfico.

“Na Arrábida”, um poemeto com dezanove oitavas, esquema rimático constante e métrica variável, abre a série, quase configurando uma reportagem pessoal sobre a vivência da Festa da Arrábida - no primeiro dia, a chegada pela madrugada leva a curta estada no Convento e visitas à Lapa e ao Portinho, sendo o poeta acompanhado pelo canto do rouxinol até ao momento em que assiste à chegada dos pescadores, num olhar que bem representa uma tela do passado. O segundo dia é vivido no Convento, entre a alegria dos romeiros e os seus hábitos, particularmente no que respeita à devoção sentida, havendo também o compromisso pessoal do poeta - “trabalhar com amor do coração, / sempre pronto para ajudar meus companheiros”, manter-se como festeiro e recordar “com saudade os que morreram, / desta festa tão devotos promotores”. A parte que mais oitavas ocupa é a da partida e regresso a Azeitão, momento de ternura e emoção, pois a imagem da padroeira “só depois de passado um ano torna a vir, / esta serra montanhosa visitar”. O leitor assiste à narração da viagem a cavalo, à festa das bandeiras e estandartes, aos anjos no momento da despedida, num trajecto por Olivalinho, Calhariz, El Carmen, Parral, Pedreiras, Casais, Aldeia de Irmãos, Oleiros, S. Marcos, Baldrucas, até ao momento  da “linda entrada / que dá o círio nesta vila nossa amada”, tempo de alegria e de partilha, de festa, com repicar de sinos, arraial, foguetes, havendo ainda uma palavra para os mais cépticos na derradeira estrofe - “Para muitos já não há religião, / cada um tem o seu modo de pensar. / Uns querem que ela acabe e outros não, / é difícil tanta gente contentar... / Àqueles que ainda têm devoção / ninguém tem o direito de censurar, / é sempre livre a vontade de qualquer / e pensará da maneira que quiser.”

Três cantigas compostas por mote (quadra) e quatro décimas abordam ainda o momento da festa - uma, a propósito da partida para a serra, em que os sentimentos são uma mistura de alegria pela festa e pela participação e de tristeza ocasionada porque muitos “se estão lembrando / dos tristes horrores da guerra” (cantiga produzida durante a participação de Portugal na Grande Guerra, por certo); a segunda, a cantar o prazer de estar na Arrábida, entre rosmaninho, jasmim, medronheiros e chilreios, contemplando a vista sobre Azeitão e subindo ao Alto Formosinho; a terceira, incidindo sobre o Convento franciscano, motivo para evocar a lenda de Hildebrando e a construção da comunidade arrábida com Frei Martinho e Pedro de Alcântara.

A rivalidade entre duas aldeias, transferida para a argumentação dos respectivos santos patronos, está patente em duas cantigas que dialogam - uma, “dedicada ao Santo da minha aldeia que se zangou com o Santo da aldeia vizinha” (S. Sebastião); a outra, constituindo a resposta de S. Marcos aos remoques recebidos. O primeiro faz pública queixa logo no mote - “Eu sou o S. Sebastião / tão desprezado e sozinho, / o S. Marcos esse tem / tudo bem arranjadinho” e lembra as coisas desaparecidas da sua “velha morada” (louvando um tal “José da Tia” por ainda se esforçar na guarda) e o mau estado da calçada de acesso, lamentando ainda o abandono a que foi sujeito pelos antigos devotos e festeiros. A resposta de S. Marcos reflecte as conversas dos favores políticos locais - a partir da quadra “Ó mártir S. Sebastião, / não estejas assim zangado. / Deixa estar que o teu palácio / também vai ser arranjado”, o santo explica que as obras da sua capela tiveram de ocorrer porque o telhado estava a cair e anuncia que o seu vizinho também virá a ter obras (um chafariz e uma avenida), ainda que apresente uma justificação para o progresso na sua zona: “Dizes que isto é um jardim? / E admiras-te se for? / Tu não vês que o vereador / mora aqui ao pé de mim?”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1549, 2024-02-28, pg. 6