“Fui com o objectivo preciso de me ir espantar. Fui seguindo a ideia de passear o mutismo, nesse princípio de desejo de ser olhar aberto e recepção. (...) Fui anónima: tanto para atravessar a cidade, como para ser atravessada.” Assim descreve os seus sentimentos a setubalense Ana Mata (n. 1980), no momento que antecede a narração dos dias passados no visitado paraíso da arte, itinerário contado em Carta de Florença (Sr Teste Edições, 2024).
Ainda que o título nos remeta para o estilo epistolográfico, a verdade é que nesta obra se mesclam também registos diarísticos e de memória, com a reprodução de duas dezenas de águas-fortes com tinta sanguínea, gravuras a partir de peças vistas nas mostras que o espaço florentino permitiu. A intenção deste registo, em que se misturam o tom autobiográfico e a faceta ensaística, surge logo no início, sublinhada em três aspectos: “Esta escrita serviu o sentimento de aventura íntima, a que não desmaiasse no caos, a minha permanência na experiência.” Descoberta e continuidade na memória são, pois, dois tons fortes nesta visitação (no que esta palavra sugere de curiosidade e de abertura) realizada em Março de 2023, afigurando-se o registo escrito como a forma de albergar o que poderia ser a “síndrome de Florença”, caracterizada pela comoção perante o fascínio da arte.
A viagem foi preparada — “Comecei, antes de ir, a viagem a Florença”, escreve Ana Mata logo no início da narração para dar conta de que se deixou povoar pelas imagens antecipadamente recebidas, impressão forte que impregnou a necessidade de ir “à presença”. Como antecedentes da partida, a recomendação de amigos associou-se a leituras de outras experiências do mesmo itinerário legadas por relatos de Stendhal e de Rilke ou por um poema de Bernardo Pinto de Almeida, de maneira que melhor se cumprisse a intenção da viagem.
Perante as obras vistas, foi forte a impressão sentida pela figura humana, pela elegância dos gestos nos quadros, pela expressão de dor, pela força dos pormenores. Deslumbramento e comoção não faltam neste relato intenso, como no momento em que se fala dos quadros de Fra Angelico, vistos no Museu de S. Marcos: “Há pinturas pequenas e tão delicadas que me parecem terem sido pintadas num estado de oração íntima”. O cerne do sentimento perante estas telas cola-se às raízes de quem contempla: “Estou grata pela religiosidade que me deram em criança, mesmo se já não cumpro os ritos ou se procuro outros lugares de infinito. Se tivesse uma repulsa pelo religioso, pelas histórias de Cristo, de Maria, dos anjos, não veria estas obras da mesma maneira, tendo então um filtro que creio que bloquearia o seu sentimento profundo.”
Todo o livro de Ana Mata é uma tentativa para que se cumpra o que revela quase no final — “Agora quero que Florença permaneça.” A reflexão surge a bordo do avião, em regresso a Lisboa. “Que fica deste convívio imenso com estas obras feitas por uma humanidade grandiosa, magnífica, que aponta para o alto? Que fica também desta lição de humildade? Andei de corações nos olhos, com esse filtro apaixonado que tanto activou a hemoglobina nas minhas sanguíneas.” E, como conclusão: “Agora, os nomes dos lugares do mapa já não me são abstractos. Florença inscreveu-se.” Uma “inscrição” a tal ponto forte que as sanguíneas a partir de Botticelli, Caravaggio, Tiziano, Memling, Fra Angelico e outros têm de fazer parte do livro, uma forma de apropriação a cargo da visitante.
Partilhar a arte vista em Florença neste livro é um pouco como admirar a cidade banhada pelo Arno, atravessado por pontes, a partir da praça Miguel Ângelo, um misto de distância e de impossibilidade de tudo apreender ou uma relação de sedução. Nesta cidade da Toscana, também Ruben A. (1920-1975) sentiu o fascínio, relatado em Páginas - III (1956): “Florença tem coisas demais e é como uma mulher possessiva que tem sempre qualquer pormenor ainda não visto — sair de Florença é sentir o mesmo alívio de liberdade em semelhança a férias conjugais. Na nossa vida há momentos só nossos tão intimamente nossos que ninguém pode tentar sequer incluir-se.” A metáfora é forte, revelando a vontade de continuar a descobrir o espírito da cidade, o de olhar a arte, nela se inscrevendo.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1407, 2024-11-06, pg. 10.