Camilo Castelo Branco (1825-1890) nem sempre tem sido bem tratado nos programas de estudo do ensino secundário — por vezes omitido, outras vezes enormemente fragmentado, aparecendo mais como um autor de segundo plano, que até pode ser apenas possibilidade. O facto de estar a passar o segundo centenário sobre o seu nascimento tem sido um bom pretexto para uma quase “redescoberta” deste autor.
CREscendo é o título de um jornal digital (que há dias foi vencedor do Concurso Nacional de Jornais Escolares, promovido pelo Público), publicado pela Escola Secundária de Sampaio (Sesimbra), coordenado por Catarina Labisa, professora. Com três números editados no ano lectivo passado, o segundo, saído em Abril, dedicou meia centena de páginas (metade da edição) ao génio e obra camilianos, em trabalhos elaborados por alunos do 11.º ano, decisão assim justificada no editorial: “É tempo de comemorar o escritor mais prolífico da literatura portuguesa, alguém que escreveu como quem come, ou mesmo quando não comia, como quem respira. (...) Camilo Castelo Branco (...) viveu muito e em circunstâncias tantas vezes apertadas, acossadas, dramáticas, e essa vivência torrencial foi transposta para páginas que podem hoje parecer algo pueris, ao bom tom romântico, mas que nunca prescindem do humor, pois, como dizia o autor, só se consegue uma boa página de tragédia depois de destilar tudo o que existe de comédia na vida.”
Nove obras camilianas são abordadas (Amor de Perdição, Onde está a Felicidade?, Doze Casamentos Felizes, Memórias do Cárcere, Noites de Lamego, O Esqueleto, O Retrato de Ricardina, A Mulher Fatal e Novelas do Minho) por dezassete alunos e por dois professores, em leituras muito abertas, dando azo a que os trabalhos dos estudantes, além de apresentarem um resumo das narrativas, sejam enriquecidos pelo recurso à citação da obra em apreço e pela opinião crítica de leitor, maioritariamente virada para a possível “actualidade” que essa obra possa ter ou para a importância que ela alcançou no trajecto camiliano, não esquecendo também as “releituras” que algumas delas tiveram, fosse noutros autores (como Agustina Bessa-Luís ou Aquilino Ribeiro) ou noutras artes (como no cinema).
Muito interessante é o texto de abertura, assinado pela professora responsável e por Maria Carolina Livramento (aluna), que, traçando um percurso biográfico de Camilo, o fazem assentar sobre marcas autobiográficas que perpassam na obra (em No Bom Jesus do Monte, Amor de Salvação ou Duas Horas de Leitura, por exemplo), dando destaque à forte possibilidade que associa Camilo à história local de Sesimbra — o facto de sua mãe, Jacinta Rosa, ser originária de família de pescadores sesimbrense, ligação defendida desde 1944 a partir das páginas do jornal O Sesimbrense, recurso bem presente neste ensaio (a relação amorosa dos pais de Camilo, iniciada em Sesimbra, já passou para a ficção, como aconteceu no romance Senhora Menina, de Augusto da Costa, publicado em 1952). Curiosa também é a abordagem feita a Amor de Perdição por Maria Ramos e por Nídia Carvalho, inserindo esta obra na tradição do amor impossível, aproximando o destino dos amantes ao Romeu e Julieta shakespeariano, ambos momentos de um trajecto que poderia recuar até Tristão e Isolda e que se tem prolongado no tempo...
Ao longo dos vários textos, os alunos-autores vão dando nota de aprendizagens para a vida, como acontece, por exemplo: com Leonor Severo, quando, depois de ler Onde está a Felicidade?, nos diz que Camilo “mostra que a felicidade talvez nunca seja perfeita, mas pode estar mais perto do que imaginamos, se estivermos dispostos a reconhecê-la”; com João Silva, que, a propósito de Doze Casamentos Felizes, considera que se idealizam “às vezes as relações conjugais, mas as tensões entre as pessoas, as convenções que as condicionam e a hipocrisia social podem destruir muito do que o ideal construiu”; ou com Mariana Santos, sobre o conto “Maria Moisés”, quando refere a sua importância “por nos conseguir tocar tão profundamente que nos faz questionar os valores que eram aceites naquela época, alguns dos quais ainda ressoam nos dias de hoje, como a desigualdade de género, os tabus relativos à sexualidade e o peso diferenciado que é dado ao homem e à mulher no que toca à liberdade sexual”.
O estilo camiliano não escapa às observações, como mencionam, por exemplo, Leonor Sotero e Marta Garcia ao referir as histórias de Noites de Lamego (“todas com um sabor de realidade e fantasia, de romance e de crítica, boas para ler ao serão e deixar-se prender pela extraordinária arte de Camilo para nos levar a conhecer personagens originais e enredos intrincados que ele fundou na sua observação, na sua experiência e na sua imaginação”) ou Matilde Pinheiro, ao classificar “A Morgada de Romariz” (“uma obra muito feliz, que tem um bocadinho de tudo o que faz uma boa narrativa: personagens peculiares, sentimentos muito humanos, problemas familiares, crítica social e comédia quanto baste para aliviar a seriedade de algumas cenas mais cortantes”).
As apreciações que alimentam esta edição de CREscendo constituem outras tantas motivações para o convívio com Camilo, afinal uma maneira de formular um convite para esse gesto de o lermos... e é muito bom que esse convite venha da parte da juventude!
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1637, 2025-11-05, pg. 10.

