sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Sampaio Faria e as reflexões sobre Tróia


 

Logo na introdução, o livro anuncia ao que vem: “este texto não pretende ser mais do que um limitado conjunto de reflexões sobre a Península de Tróia, tendo como base uma revisão sumária do seu povoamento e do possível impacto que a acção antropogénica daí resultante possa ter desencadeado ou venha a desencadear no desenvolvimento e consolidação evolutiva do seu ecossistema.” E, mais adiante: “teremos de nos indagar quanto ao tipo de acção antropogénica que queremos nas décadas vindouras e até que ponto essa acção poderá ser compatível com a sobrevivência da actual estrutura ecossistémica troiana”.

É assim que J. G. Sampaio Faria abre o seu ensaio Península de Tróia - Reflexões Improváveis (Primeiro Capítulo, 2022), anunciado como “reflexão partilhada sobre o presente e o futuro da península” e conjunto de “pontos de vista e questões resultantes da interpretação do autor sobre a realidade evolutiva do ecossistema troiano”.

Depois de explicar a formação da península (cujo perfil actual rondará uma idade de milénio e meio), surge a pergunta que não será apenas retórica “Península a prazo?”, levantando-se aí um conjunto de interrogações sobre as consequências advindas do aquecimento global e da ocupação humana na região peninsular, antevendo-se uma alteração do espaço, seja na forma da península, seja no estuário sadino.

Várias páginas são dedicadas ao estudo do povoamento da península de Tróia, servindo-se Sampaio Faria de uma cronologia determinada por dois períodos: o “sem aparente modificação do ecossistema troiano” e o “com aparente modificação do ecossistema troiano”, bem mais longo o primeiro, com origem em época anterior à chegada dos Fenícios, tempo de “relativo sossego ecossistémico” que se estendeu até aos anos 70 do século passado; por essa altura, o turismo intensificava-se na península - algo com efeito muito superior ao que fora desenvolvido por manifestações de curta duração e de efeitos diminutos (em termos comparativos), como a ocupação estival localizada das praias troianas, as acções de índole religiosa, a indústria baleeira (em curtos dois anos), as instalações militares para apoio à Base Aérea de Beja ou o alojamento dos regressados das ex-colónias - e trazia consigo a poluição resultante da mobilidade motorizada e do aumento de ruído e a progressiva devassa do sistema dunar por parte dos visitantes esporádicos.

Teme o autor que este conjunto de pressões se torne ingovernável no futuro se não houver planeamento adequado associado às unidades de desenvolvimento turístico entretanto aprovadas (e em curso) na península, situação agravada pela multiplicidade de instituições com responsabilidade sobre o local, num retalho facilitador de acções desfavoráveis ao ecossistema.

Considerando a importância da península para a solidez do perfil do estuário do Sado, o autor lamenta a intervenção humana que tem contribuído para a degradação progressiva do ecossistema e para a sua descaracterização, assim como lastima a quase inexistência de pontes da parte dos grandes proprietários e entidades tutelares com os “moradores / residentes frequentes”, que constituem “uma minoria sem capacidade de decisão sobre o futuro do seu habitat” e que deveriam “ter uma palavra a dizer sobre as suas condições de vida”.

Assim, Península de Tróia - Reflexões Improváveis afirma-se, por um lado, como um texto que equaciona a acção sobre o território a partir de dados históricos e da situação actual, e, por outro, como uma proposta de participação cidadã de quem ali vive um tempo significativo, com vontade de participar no interesse comum perante um espaço que não deverá estar à mercê de decisões que não contem com as pessoas. Em poucas palavras: um alerta e a disponibilidade e expressão do direito à participação.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 947, 2022-10-26, pg. 9.


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Brincar, como acção amorosa


 

O que pode acontecer se ouvirmos duas dúzias de pessoas com idades entre os 70 e os 100 anos para nos falarem sobre o brincar? Provavelmente, o mesmo que sucedeu aos entrevistadores João Pedro Santos, Leonardo Silva, Paula Moita e Vanessa Iglésias Amorim, que, em Setúbal, fizeram dessa experiência uma forma para acordar “a memória que fica registada no corpo durante o acto de brincar”, capaz de “trazer os sorrisos mais genuínos que podemos ver num Ser Humano”. A conclusão foi simples, mas muitas vezes contrariada ao longo dos tempos e das educações: “brincar é realizar a infância, é inventar o próprio tempo, onde os corpos são livres através do jogo e do amor.”

Memórias e considerações sobre essa “realização da infância” constam no livro Museus de brincar (Dar cor à vida, 2022), de cujo prefácio são extraídas as citações utilizadas, obra coordenada por Leonardo Silva e Paula Moita.

Por sete capítulos passam o brincar e a sua interpretação em termos sociológicos, mundo e tempo sempre contextualizados em função da sociedade, da economia, da política, dos espaços e das formas de vida, ressaltando perante o leitor o mundo das diferenças, pois “ser criança e poder brincar para muitos era privilégio e para outros era sonho e resistência”. Por outras palavras: ser criança nem sempre foi fácil, uma vez que a educação a relegou, por muito tempo, para o ponto mais frágil da ordem social e, como tal, dependente da formatação que a sociedade lhe oferecesse, fosse na família ou na escola. Assim se compreenderão as diversidades de tratamento de acordo com o género - os rapazes iam à escola, mas as raparigas não, pois tinham o trabalho da casa para fazer; raparigas e rapazes tinham brincadeiras diferentes; etc. Por outro lado, a duração da infância afigura-se nestes testemunhos como algo discutível, pois, em muitas situações, ela foi rápida, determinada pela dificuldade - se a nonagenária Conceição Pereira testemunhou ter sido “pouco criança” e o octogenário Ciríaco Visitação lembrou que, “a partir dos 10/11 anos”, deixou “de ter infância”, o que, na verdade, querem dizer é que o mundo do trabalho começou muito cedo, tornando-se limitada essa fase de crescimento.

É curioso verificar como a sociabilidade infantil, no entanto, se foi construindo: algo que foi variando, mas que teve como cadinho a distância da família, a rua, a vizinhança, a necessidade de inventar brincadeiras e brinquedos (muitas vezes construídos a partir do mundo dos adultos), universos amplos para a imaginação e para o estabelecimento de relações, para descobrir mundos - “a bola era feita de meia de mulher, depois enrolava-se e punha-se papéis lá dentro” (Manuel Lúcio dos Santos); “íamos às modistas e pedíamos bocadinhos de trapo e fazíamos umas bonequinhas com uns trapos e um bocadinho de linha” (Maria Dilar Pimpão); “o meu pai tinha um torno e eu comecei a fazer piões para jogar, também os fazia para os meus colegas de escola” (José Gonçalves); “fazíamos partidas, fazíamos umas às outras trinta por uma linha, brincávamos com farinha e enchíamos a cara umas das outras, outras vezes era com carvão” (Suzete do Carmo).

Testemunho e recolha interessantes, este livro leva-nos a outros tempos, é verdade, mas também chega ao presente, em que as mesmas personagens optaram por reconhecer o valor do brincar e da sua importância na educação dos netos e bisnetos, assim mostrando como é verdadeira a definição de José Tolentino Mendonça na obra O hipopótamo de Deus e outros textos (2010): “Brincar significa agir, não a partir do necessário ou utilitarista, mas como pura expressão gratuita, amorosa.”

J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 942, 2022-10-19,  p. 10.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Imagens do ser professor (a propósito do Dia Mundial do Professor)



Em 1886, Edmundo de Amicis (1846-1908) publicava a narrativa Coração, diário de um jovem estudante, que, num determinado dia, relatava a visita da criança e do seu pai a Crosetti, velho professor de 84 anos. Este encontro advinha do facto de o educador ter sido condecorado pelos seus 60 anos de ensino e da forma viva como o progenitor do jovem, seu ex-aluno, ficara marcado pelas lições recebidas, tal como, durante a viagem foi testemunhando: “Foi o primeiro homem que me estimou e ajudou, depois do meu pai. Nunca esqueci alguns dos conselhos que me deu, nem de certas descomposturas que me faziam voltar para casa com um nó na garganta. Todos os dias chegava à aula com a mesma disposição, sempre muito consciencioso, cheio de boa vontade e atento, como se começasse a ensinar pela primeira vez.”

A recordação de Bottini pode parecer apenas sentimental, mas ganha todo o sentido se pensarmos com Christopher Damien Auretta: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.” (Autobiografia de uma sala de aula, Colibri, 2020). E lembremos Frank McCourt (1930-2009), que, na sua obra autobiográfica O professor (Presença, 2009), relata que chegou a ter de pensar com os alunos o que era o acto de ensinar e o que era a escola: “Descobri uma equação. Vou escrever do lado esquerdo do quadro um M maiúsculo e do lado direito do quadro um L maiúsculo e depois faço uma seta da esquerda para a direita, de MEDO para LIBERDADE. Acho que nunca ninguém é completamente livre, mas o que estou a tentar fazer com vocês é empurrar o medo para um canto.”

Estratégias úteis para a vida, na sua pluralidade de sentidos, era também aquilo que o professor do romance As sombras de uma azinheira, de Álvaro Laborinho Lúcio (Quetzal, 2022), pensava conseguir junto dos seus alunos, pois, “para ele, ser professor não era muito diferente de ser médico. A ambos se exigia estudo e dedicação para compreenderem, para conhecerem bem aqueles com quem lidavam, perceberem as suas origens, comprometerem-se na construção dos seus destinos.”

O objectivo supremo da escola e do ser professor, como pensou Manuel Nunes em A Professora, os Porcos e os Cisnes (Gradiva, 2012), é claro: “A escola existe para educar para o sublime. A sua missão consiste em conduzir para o mais alto do mais alto. Ela tem a obrigação moral de ter como meta e como horizonte a perfeição.” Este é o desafio de sempre para o professor, personagem que, no romance Não matarás, de Teresa Martins Marques (Gradiva, 2022), é assim apresentada: “sorriso e cordialidade, conhecimento seguro das matérias, autoridade sem autoritarismo, fazem o bom professor.”

Para seguir este caminho, Sebastião da Gama (1924-1952), em 1949, anotava no seu Diário (Presença, 2011): “- Tens muito que fazer? - Não. Tenho muito que amar. (Não entendo ser professor de outra maneira.)” E estes princípios não se delapidam no tempo - em 2007, Daniel Pennac manifestava, em Mágoas da escola (Porto Editora, 2009), um sentimento semelhante: “Os professores passam o tempo a refugiar-se nos métodos, quando, no fundo, sabem perfeitamente que o método não basta. Falta-lhe qualquer coisa. (...) Amor!”

Misturam-se, ao longo destes retratos, muitas coisas, mas a essencial permanece - a imagem e o papel do professor. E que bom seria se pudéssemos subscrever aquilo que Albert Camus (1913-1960) disse sobre o professor no seu romance A peste (1947): “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 937, 2022-10-12, p. 4.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Eugénio Lisboa: poemas em tempo de guerra



Há um texto do ucraniano Andriy Lyubka (n. 1987, em Riga) intitulado “A guerra não é tempo de literatura”, de 7 de Abril, que, se afirma que os poetas ucranianos estão ocupados no apoio social e na defesa da pátria, também confessa: “Nunca na minha vida entendi tão bem poesia como durante a revolução e a guerra. É nestes momentos que ela pode acalmar, ajudar a chorar, e também inspirar à luta, ensinar a cerrar os dentes e a lutar pela vida.”

Podemos cruzar esta afirmação com a justificação que Eugénio Lisboa (n. 1930) apresenta para o livro Poemas em tempo de guerra suja (Guerra & Paz, 2022): “Preferia não ter escrito este livro, sinal de que não tinha havido uma guerra que, de resto, continua a haver. Um tirano (...) promoveu a invasão e a destruição da Ucrânia e, dentro de mim, a indignação que é o sangue destes versos.” Este desabafo confronta-se com uma inevitabilidade - a guerra continua(rá), tal como Lisboa reconhece em nota introdutória: “Nenhum dos grandes livros que se escreveram contra a guerra, ao longo dos séculos, evitou jamais que uma nova guerra se travasse, com o habitual cortejo de ruínas, mortos e mutilados.”

O título diz ao que vem: poemas produzidos na simultaneidade desta guerra que desde Fevereiro de 2022 nos assombra e minimiza, entre 25 de Fevereiro e 26 de Junho. Datados todos eles, assumem-se como registos dos dias, muitos falando sobre a guerra, outros reflectindo sobre a vida (sua longevidade e sentido), acontecimentos do tempo (a morte de Paula Rego, por exemplo), a memória (vivências do passado, recordações de Moçambique), a companhia da Ísis (a gata que motiva alguns belos textos sobre os felinos, “mínimos tigres de salão”).

A guerra suscita a indignação, prevalecendo o tom panfletário, irónico e provocatório, o apelo à tomada de posição - “Mas que merda de poetas, / de liras enferrujadas, / pouco vigor nas canetas / e de iras mal mijadas! // Mas que vergonha de gente, / tão indigna de Camões, / de tesão deficiente / e falta de palavrões!”, versos de 27 de Fevereiro, protestam contra o silêncio dos poetas portugueses perante a catástrofe (e de todos os que não querem comprometer-se), quadras que terminam numa interpelação desafiante: “Acordai a vossa lira, / apodrecida no sono / e instigai-lhe a ira, / que não fique ao abandono!”. O alvo notado nas reflexões poéticas sobre a guerra é Putine, tirano retratado como “Mostrengo”, motivador de perguntas “a alguns amigos russos”, como Turguénev, Tchékov ou Tolstoi, sobre o que diriam desta figura.

Se a indignação contra o absolutismo se funda na sua vontade de matar o inimigo, intensa é a contradição surgida no poema “Matei o meu inimigo”, em que o soldado se amargura, depois de reparar no cadáver que fez: “Empalei-o e abracei-o, / colocando-o no chão. / Com cuidado, observei-o: / era, horror!, o meu irmão!”

Mais para o final, o tom torna-se mais introspectivo, num diálogo com o passado, o sentido da vida, a valorização do que se sentiu, as ausências dos que já passaram, terminando o livro com um soneto-reflexão sobre o tempo preenchido: “Dizem-me que tive uma vida cheia. / Digo-lhes que sim, que, de facto tive. / Se quiserem, foi mesmo uma epopeia. (...) // Mas o que é ter tido uma vida cheia? / As vidas enchem-se como tonéis? / (...) // Uma vida cheia, dizem Vocês? / (...)” As perguntas retóricas pontuam o poema, devolvendo a reflexão para os outros, pretexto para o conhecimento das razões que levaram a que portas se abrissem e se fechassem, afinal a história das nossas circunstâncias... 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 932, 2022-10-04, p. 10.