quinta-feira, 13 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (3)

 


Se há marca que ficou nesta relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama, essa foi a da dimensão da alegria, um traço fundamental na personalidade do poeta, como Joana Luísa fez sentir numa acção formativa para educadores em 1982, ao dizer que “a sua alegria transbordava”, cunho que ela também alimentava e que se lhes ajustava. Mesmo nos momentos mais dramáticos, marcados pela doença do marido, o papel que Joana desempenhou junto dele foi de lembrança dessa mesma alegria, valendo a pena relembrar a história a propósito do poema “Fé”, datado de finais de 1951, o último poema que ele escreveu: “Estávamos na Arrábida naquele 8 de Dezembro de 1951. O Sebastião tinha andado todo o dia um tanto misterioso: poucas falas, o olhar muito distante. Não se sentia muito bem de saúde mas não aludia ao facto. Depois do jantar, saímos (...) para ouvir o Mar, a Serra, o Vento... (...) Deitámo-nos cedo. (...) Sobre a madrugada, acordei com o soluçar do Sebastião, que me abraçava estremecendo com os fortes soluços que não conseguia conter. (...) Entre soluços e lágrimas, disse-me: ‘Se um de nós agora morrer, aquele que ficar vai sofrer muito, não vai, querida?’ Nunca soube explicar o que senti naquele momento, mas tive a ideia de que foi Nossa Senhora que me ensinou aquele recado tão bonito: ‘Ó filho, somos os dois tão novos! Quem vai pensar na morte com esta idade? Vamos dormir, sim?’ ‘Tens, razão, desculpa...’ Abraçou-me e não chorou mais. Passado pouco tempo, acordou o dia com o Sol brilhando sobre o Mar, lindo, luminoso. E, baixinho, com voz meiga como de costume quando me dizia um poema acabado de nascer, disse-me o poema ‘Fé’.”

Na véspera do Natal de 1955, Matilde Rosa Araújo recebeu carta de Joana Luísa, noticiando o seu regresso a Azeitão e o abandono da congregação religiosa a que se ligara após o falecimento de Sebastião da Gama, comunicação eivada de amor e de poesia: “Voltei, Tilde. (...) Não poderás calcular quanto me custou tomar esta resolução e até onde vai ou irá o sofrimento de sentir, mais que nunca, se é possível, a falta do Bastião, do meu querido Bastião que eu espero encontrar em todos os cantos da casa e nunca encontro.” Era o ponto de partida para uma viagem de absoluta preservação da memória, afinal o itinerário que assumiu.

O livro Estala de Saudade o Coração, de Joana Luísa da Gama, contém ainda mais duas partes: uma, constituída por crónicas versando memórias da infância em Azeitão, por onde passam situações e figuras familiares, pessoas que povoaram a terra com maior ou menor popularidade, eventos habituais no calendário local (a chegada do circo ou as marchas, por exemplo), personalidades e instituições que fizeram a história local (Frei Martinho ou o juiz de fora Machado de Faria, a quinta da Bacalhoa ou a Perpétua Azeitonense), havendo ainda espaço para momentos de reflexão, como o texto em que é valorizado o papel das mães e do esforço que lhes estava atribuído quando ainda não era celebrado o seu “dia”, por todos estes textos perpassando um sentimento de ternura e de afecto às experiências vividas ou testemunhadas.

O último grupo de textos alberga poemas de Joana Luísa da Gama produzidos entre Março de 1942 e Novembro de 1944, neles surgindo a dimensão religiosa, a expressão lírica de um “eu” dominado pela luta interior e por um certo sentimento nostálgico, imagens da infância e a influência da Natureza, em vários passos surgindo evidente alguma abordagem comum a Sebastião da Gama, como no poema “A Serra vestiu-se de noiva”, que é ao mesmo tempo um poema de amor, ou “Ouve, mar, que vens bramindo”, em que o sujeito poético, feminino, desabafa com o mar, perguntando-lhe pelo amado, seguindo a pista das cantigas de amigo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1487, 2025-03-12, pg. 9.

 

1 comentário:

Anónimo disse...

Aqui se vê o profundo Amor de Joana Luísa pelo seu Bastião.