quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Teresa Meireles e contos para levar no bolso (1)

           

O título diz tudo - 101 Contos de Bolso. A quantidade de textos e a extensão dos mesmos pode ser um convite para a leitura desta obra de Maria Teresa Meireles (a que foi atribuído o Prémio do Conto Manuel da Fonseca no ano passado, agora publicada pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém), onde quer que estejamos, cultivando o aproveitamento do tempo. Assim, nunca o leitor será defraudado pelas interrupções, salvo se elas decorrerem das corridas da imaginação, porque, como refere a epígrafe escolhida, de Lídia Jorge (no seu conto A instrumentalina), “um conto breve faz um sonho longo”. E este é o primeiro desafio que Teresa Meireles apresenta, ainda que através de palavras emprestadas - cada um destes “contos-de-bolso” cumpre-se com a conivência do leitor, levado a participar na história pela imaginação que o texto suscita. Se isto é verdade para qualquer obra literária, muito mais importante se torna quando os elementos fornecidos pelo narrador se pautam pelo minimalismo e pela rapidez narrativa...

Podemos assentar logo na primeira história que nos é apresentada, “Gostava de miniaturas”, uma quase-teoria da micro-narrativa, em que tudo o que rodeia e suscita a vida da personagem tem a ver com o minúsculo - dos brinquedos ao vestir, da alimentação aos livros preferidos, das memórias de infância até à vontade de imitar personagens diminutas, da profissão escolhida até ao objecto da sua investigação, do trabalho em torno de uma tese até à sua perda entre grãos de areia... Mas este conto é ainda importante pelas remissões que faz para o mundo da literatura, não só pelo entusiasmo e conhecimento que a personagem revela quanto a nomes que construíram a tradição literária do universo das pequenas coisas (Jonathan Swift, com Gulliver; Alexis Carroll, com Alice; Charles Perrault, com os seus contos), mas também porque deixa a porta aberta para a eventualidade de outras possíveis referências literárias a surgirem - e, de facto, elas visitam-nos a cada passo, chamadas a propósito de estabelecimento de relações ou de lembranças, vindas de variadíssimos universos - Pablo Neruda, Jane Austen, Karen Blixen, Rousseau, os irmãos Grimm, Simone de Beauvoir, Colette e também o referencial da Bíblia.

A entrada nos sucessivos contos abre as portas ao leitor daquilo que podem ser cenas dos quotidianos - casos da vida, em que interferem as nossas inseguranças, as nossas desistências, as nossas des-ternuras; histórias da vida, em que sobressai o valor do momento, o ímpeto da decisão ou as suas consequências, o convívio com os hábitos que nos vão fazendo, a inacessibilidade ao que o outro sente, a insistência na não-violação da privacidade e da intimidade.

A relação das personagens com o narrador vai variando ao longo dos textos, sendo mais frequente o distanciamento para a terceira pessoa, embora haja também muitos exemplos de narração na primeira pessoa, seja ela masculina ou feminina, por vezes mera testemunha do visto. O ambiente que rodeia as personagens decorre frequentemente da família, dando espaço para uma presença muito marcante dos avós e, por vezes, dos pais e do namorado ou marido.

Interessante é acompanhar o valor dado à expressão através da força da palavra nestes 101 Contos de Bolso, que ocorre através de múltiplas situações: a construção de neologismos (“termo-incompatibilidade” ou “verbotropismo” - fica o desafio para descobrirem os seus significados na tarefa de leitura); o louvor da língua, da fala e da comunicação, presentes, por exemplo, numa narrativa em que o assunto ronda uma contadora de histórias; a criação de situações do fantástico através do jogo de palavras (sugerido, por exemplo, através da imagem de uma hera trepadora e invasora) ou por via da riqueza imagética (como no caso do pardal que desapareceu entre os seios de uma tia de vestido florido); a valorização de uma pequena história como uma anedota; a articulação entre as palavras e a vida, numa interessante associação do que possam ser “conjugações irregulares”, vinda da incompatibilidade entre palavras etimologicamente próximas e semanticamente ligadas, como “cônjuge” e “conjugar”; a descoberta das mensagens constantes em cartas arrecadadas num sótão, enviadas pelo avô combatente da Grande Guerra, como possibilidade de imaginar o romance entre os dois apaixonados que se carteavam; a força de uma palavra no momento oportuno, como acontece no conto “O segredo”, levando a destinatária a vencer o medo e a aprender a crescer... enfim, um mundo de valorização da palavra e dos contextos que ela origina, uma homenagem também à língua que nos aproxima.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1173, 2023-10-25, p. 9

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O aluno Camus e o professor Germain (2)



Se Camus demorou cerca de um mês a contactar o professor Germain depois de lhe ter sido atribuído o Nobel da Literatura, a verdade é que associou definitivamente o nome do seu mestre ao prémio que recebeu: os textos da prelecção que fez, em 10 de Dezembro de 1957, na Câmara Municipal de Estocolmo, e da conferência “O artista e o seu tempo”, que fez na Universidade de Upsala quatro dias depois, foram reunidos sob o título Discursos da Suécia, publicado no ano seguinte, obra dedicada “a M. Louis Germain”, desta forma ficando para o conhecimento do mundo a referência que o professor foi para o premiado.

A mais antiga carta contida no livro Caro Professor Germain - Cartas e Excertos foi escrita por Louis Germain em Paris, em 15 de Outubro de 1945. Camus era conhecido pela sua intervenção jornalística em prol da Resistência e por chamar a atenção para o estado da Argélia. Depois do vocativo “Meu caro rapaz”, Germain apresenta-se e faz-se lembrar, não sem invocar o seu alistamento como voluntário, aos 58 anos, no Corpo Franco-Africano em Argel, onde militou até à Libertação. Que objectivo tinha a carta? “Estou prestes a partir para Argel e ficaria muito feliz se pudesse ver-te antes de viajar. Como penso ter contribuído, ainda que com uma ínfima parte, para o teu destino, gostaria que me confirmasses se não me enganei ao encaminhar-te para o liceu.” Camus terá recebido esta carta tardiamente, por ter saído do jornal onde trabalhava, e só responde por finais de 1945: “Quero, sem qualquer dúvida, voltar a vê-lo. Não saberei dizer até que ponto a recordação que tenho de si permanece comigo - nem como lhe dar conta da minha gratidão. Mas, pelo menos, podemos falar desse passado, que continua a ser o que tenho de mais querido.”

A correspondência entre os dois manter-se-á até final da vida de Camus, manifestando este sempre a importância que Germain teve na sua vida, como se pode ver em carta de 13 de Fevereiro de 1950 - “O aluno permitir-se-á censurar uma frase ao seu querido mestre. Aquela em que me diz que tenho mais que fazer do que ler as suas cartas. Não tenho e nunca terei nada melhor para fazer do que ler as cartas daquele a quem devo o que sou, e que amo e respeito como ao pai que nunca conheci.”

Na última carta conhecida de Germain para Camus, de 30 de Abril de 1959, o professor revela o princípio que praticou nas aulas a que a criança Albert assistiu: “O pedagogo que quer desempenhar conscientemente a sua profissão não despreza nenhum dos momentos que lhe é oferecido para conhecer os seus alunos, as suas crianças, e expõe-se a eles continuamente.” E, mais adiante, na mesma missiva: “Creio ter respeitado, durante toda a minha carreira, o que há de mais sagrado numa criança: o direito de procurar a sua verdade. Amei-vos a todos, e creio ter feito o possível para não manifestar as minhas ideias e influenciar, assim, a vossa inteligência jovem.” A derradeira carta de Camus, de 20 de Outubro seguinte, reafirma a importância daquele mestre: “Sabe bem que nunca poderei reconhecer completamente aquilo que eu, sim, lhe devo. Vivo com essa dívida, contente por saber que ela é impagável.”

Não fora Germain e Camus não teria prosseguido os estudos no Grand Lycée d’Argel, de tal maneira o rapaz estava destinado a um trabalho manual para ajudar na manutenção da casa de família - ao professor coube mostrar à mãe e à avó do pequeno que ele deveria continuar a estudar, que tinha todas as condições para isso. O episódio é romanceado na primeira parte da narrativa O primeiro homem, intitulada “A procura do pai”, no capítulo dedicado à escola (incluído na obra Caro Professor Germain), onde o leitor pode ver que o sentimento do aluno Jacques pelo professor Bernard outra coisa não será senão o de Camus por Germain - depois de a família aceder ao prosseguimento de estudos e depois de feito o exame de acesso ao liceu, o mestre despede-se do discípulo: “Não terás mais necessidade de mim, vais ter mestres mais sábios. Mas sabes onde estou, vem ver-me se precisares da minha ajuda.” 

Na correspondência reunida em Caro Professor Germain, impressiona a história do relacionamento entre estes dois homens, baseado na relação fraternal entre o professor e os alunos, no facto de o professor reconhecer em cada aluno uma pessoa com pensamento e ideias próprias, numa relação de afecto, cultivando a distância, da parte do professor (sem esquecer as penalizações, de que Camus dá conta no romance inacabado e publicado postumamente). Por outro lado, da parte do aluno, socialmente carenciado, vibra o enaltecimento de uma pessoa, aquele professor, que o marcou e de quem se sente devedor. As cartas que testemunham este sentimento são extraordinárias de emoção e não as podemos sentir sem as associarmos àquilo que foi um professor como Sebastião da Gama, com quem os alunos se cartearam, graças ao mesmo sentido de grandeza humana...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1168, 2023-10-18, pg. 13.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

O aluno Camus e o professor Germain (1)

 


Em 17 de Outubro de 1957, o Diário de Lisboa noticiava o nome do Prémio Nobel da Literatura desse ano, que a Academia Sueca revelara no dia anterior: “o escritor francês Albert Camus, pela sua importante obra literária que põe em relevo os problemas que hoje se apresentam à consciência dos homens.” Cerca de um mês depois, em 19 de Novembro, o laureado escrevia uma carta a Louis Germain (1884-1966), que fora seu professor no ensino primário: “Caro Professor Germain, Deixei que acalmasse um pouco todo o ruído que me envolveu nos últimos dias, antes de vir falar-lhe um pouco e de coração aberto. Acabam de me conceder uma grande honra, que não busquei nem pedi. Mas, quando soube da notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para si. Sem o senhor, sem essa mão afectuosa que estendeu à pequena criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e exemplo, nada disto me teria acontecido.”

Esta é uma das vinte cartas trocadas entre Albert Camus (1913-1960) e o seu mestre, que integram a obra Caro Professor Germain - Cartas e Excertos, acabada de publicar (Livros do Brasil, 2023), pela primeira vez editadas em França no ano passado, embora algumas delas fossem já conhecidas.

Com a publicação desta correspondência, facilmente se percebe o significado do professor para o escritor franco-argelino. Já no seu romance A peste (1947), era feita uma referência ao papel do professor - “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.” E talvez não possamos ler esta citação sem saber que, dois anos antes, se dera o reencontro entre o ex-aluno Camus e o professor Germain, adiado desde que se tinham conhecido na Escola Comunal de Belcourt, em Argel, no início da década de 1920. 

Se Camus só contactou o professor cerca de um mês depois de ser conhecida a atribuição do Nobel, a resposta do mestre demorou apenas três dias - em 22 de Novembro, desde Argel, Germain congratulava-se com a honra do discípulo e com o reconhecimento que este expressara e desabafava: “São muitos os alunos que tenho encontrado ao longo da vida e que me dizem conservar de mim uma boa recordação, apesar da minha severidade quando era preciso. A razão é muito simples: amava os meus alunos e, de todos eles, um pouco mais aqueles que a vida desfavorecera.” Esta explicação servia para Albert Camus, cujo pai, combatente na Grande Guerra, falecera na batalha do Marne, em 1914, e servia também para Germain, que combatera na mesma guerra até ao final (embora tenha sido ferido na batalha de Nieuport), se justificar: “Quando me vieste parar às mãos, ainda estava sob o golpe da guerra, da ameaça de morte que, durante cinco anos, ela fez pesar sobre nós. Eu consegui voltar, mas outros, com menos sorte, sucumbiram. Vi-os como camaradas infelizes, tombando e confiando-nos os que cá deixavam. Foi pensando no teu pai, meu caro rapaz, que me interessei por ti, como me interessei por outros órfãos de guerra. Amei-te um pouco por ele, o melhor que pude, não tive outro mérito. Cumpri um dever sagrado a meus olhos.”

Camus nunca esqueceu os ensinamentos do professor Germain. Quando, num acidente de automóvel, faleceu, em 4 de Janeiro de 1960, estava a escrever um romance, que ficou inacabado e só foi publicado em 1994, O primeiro homem, obra repleta de referências autobiográficas em que são intervenientes as personagens Jacques Cormery, um possível alter-ego de Camus, e “Monsieur” Bernard, professor que deixa perpassar a imagem de Germain - aliás, em dado passo do manuscrito, Camus deixa escapar a verdadeira identidade da personagem, escrevendo: “Dans la classe de M. Germain, pour la première fois, ils sentaient qu’ils existaient et qu’ils étaient l’objet de la plus haute considération” (“Na aula do Senhor Germain, pela primeira vez, eles sentiam que existiam e que eram objecto da mais alta consideração”).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1163, 2023-10-11, p. 8.


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Daniel Pires e o essencial bocagiano



“Livre-pensador insubmisso, heterodoxo, Bocage foi um arauto do porvir, anunciando algumas das medidas que, mais tarde, a Revolução Liberal de 1820 e o regime republicano implementaram. E, aliando o génio poético à sede de pugnar por direitos humanos inalienáveis, ponderou questões fraturantes que continuam pertinentes na atualidade.” Assim termina Daniel Pires a sua mais recente obra, O essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage (Imprensa Nacional, 2023), forma de demonstrar a importância do vate sadino e de manifestar a sua adesão a esta figura da cultura nacional a partir de Setúbal, sabido como é que parte da obra de Daniel Pires segue a temática bocagiana.

O que será imprescindível saber sobre Bocage passa pela sua vida e pelas circunstâncias do tempo, pela obra legada e pela memória bocagiana - três áreas que correspondem a outros tantos capítulos do livro.

O primeiro capítulo, “O homem e as suas circunstâncias”, é eminentemente biográfico, conjugando a história da família, o contexto da Setúbal da época e a saída de Bocage da sua terra-natal para um percurso recheado de aventura, de risco, de desafio, até à morte em 1805, três meses depois de fazer 40 anos. Cruza-se o leitor com a vida inconstante da personagem, na sua peregrinação pelo Oriente e no seu confronto com as instituições e com o poder em Lisboa (prisão no Limoeiro incluída), assim como é possível acompanhar-se o que seriam os seus círculos de inimigos (provocadores e acusadores) e de amigos (que o ampararam, defenderam, reconheceram, publicaram e até lhe pagaram o funeral). A imagem que domina é a de uma personalidade excepcional, tal como o reconheceu e registou William Beckford, testemunho que Daniel Pires reproduz: “O Sr. Manuel Maria, a mais fora do comum, mas talvez a mais original das criaturas poéticas formadas por Deus”, que deixou o inglês emocionado - “quando começava a recitar algumas das suas composições, nas quais a profundeza de pensamento se mistura com os rasgos mais patéticos, senti-me abalado, comovido.”

O segundo capítulo, “O legado de Bocage”, historia a obra do poeta nos seus vários títulos (incluindo os póstumos) e deixa ressaltar os principais contributos que a caracterizam, evidenciando a paixão que a poesia sempre foi para si, forma maior de viver, como deixou explícito na advertência do terceiro tomo das “Rimas”, ao referir que os poetas “nasceram com a brilhante mania de metrificar, sacrificam os proveitos da vida civil e até as comodidades da existência física”. Assim, Daniel Pires leva-nos a uma viagem na obra bocagiana, mostrando as influências clássica e sua contemporânea, portuguesa e europeia, a prática dos mais variados géneros poéticos da tradição literária, a tradução, a extensão e o escritor multímodo, bem como os temas da sua poesia (lirismo, autobiografia, intervenção política, crítica social, religião, erotismo, didatismo). A vastidão da obra analisada permite que seja olhada como um repositório de muitas influências e de inovações, pois Bocage “cultivou, de forma inovadora e autêntica, a poesia, o drama e a tradução, pondo em causa cânones, aparentemente inamovíveis, contribuindo para a construção de outros mais consentâneos com o dinamismo que caracterizou a sociedade do século XVIII”.

O último capítulo, “Posteridade, és minha!” (título saído de um verso bocagiano), elenca alguns contributos que têm construído a memória do poeta - edições póstumas, biografias, monumentos, homenagens, comemorações e abordagens artísticas (artes plásticas, teatro, cinema, música). Esta parte é curta, embora a lista seja vasta, limitando-se, na quase totalidade dos casos, a mencionar o nome dos autores, sem indicações de datas ou de títulos. O episódio de memória que tem mais larga presença é o da construção do monumento a Bocage em Setúbal (1871, por iniciativa dos irmãos Castilho), bem como as comemorações que nesta cidade foram surgindo (1905 e 1965, centenário do falecimento e bicentenário do nascimento).

Tratando-se de uma obra que pretende apresentar “o essencial”, cumpre bem a sua missão (embora pudesse considerar mais alguns títulos na lista da bibliografia passiva). O texto acessível e de considerável síntese torna este livro num vade-mécum útil e oferece uma abordagem séria de Bocage ao grande público.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1159, 2023-10-04, p. 10.