quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Cecília Matos mostra como José Bárcia fotografou Setúbal e Palmela



Trinta anos foi o tempo que Cecília Matos levou a amadurecer o plano de trazer para a memória o itinerário artístico e biográfico de um dos importantes fotógrafos portugueses da primeira metade do século XX, tempo de descobertas e de contactos com a obra e com testemunhos, que agora aparece sob o título de Os Dias de José Bárcia (1895-1917) (edição de autor, 2024), com informação acrescida no subtítulo, curta apresentação de parte do conteúdo — “a colecção fotográfica de Quinta do Anjo, Palmela e Setúbal”.

São cerca de 300 as fotografias integrantes desta obra, que podemos organizar em duas partes em torno do fotógrafo Bárcia (1873-1945). Na primeira, que traça o seu perfil biográfico, o leitor assiste a um recuo até às origens galegas do biografado, passando pelas suas apetências musicais e pela profissão de desenhador de obras públicas, até chegar àquilo que não foi a sua profissão, mas o seu gosto, a fotografia, sendo ainda de destacar o relacionamento com o olissipógrafo Júlio de Castilho, parte que também nos revela peças de correspondência epistolar de Bárcia com diversos destinatários (especialmente com Castilho). Cecília Matos faz o levantamento dos arquivos onde existe o acervo fotográfico de um autor que testemunhou pela imagem momentos tão importantes como a construção da nova Escola Médico-Cirúrgica (1906), o funeral real (1908) ou a construção do Hospital Júlio de Matos, articulando a sua investigação com a recepção que a obra de Bárcia teve na época e sobre quem Brum do Canto deixou dito ser autor de fotografias “reveladoras de estudo e muito apreciável capacidade artística” e a Ilustração Portuguesa (de 21 de Março de 1918) registou ser “o fotógrafo amador a quem a arqueologia olissiponense deve relevantes serviços”.

A segunda parte da obra é ocupada com o tempo em que Bárcia registou momentos de Setúbal, Palmela e Quinta do Anjo, em vindas da capital que muito ficaram a dever ao facto de uma sua tia, Amélia Várgea, ter sido professora, desde 1877, em Palmela e, a partir de 1894, em Setúbal. Tais instantes, motivadores de outras tantas fotografias, surgem muitas vezes com as legendas que o próprio artista registou, anotando nomes dos retratados, referências dos locais e, até, pormenores dos contextos desses momentos, por aqui passando as histórias de pessoas, de festas e do quotidiano ou os testemunhos de um passado ligado a narrativas familiares e locais.

Ao longo do livro-álbum, Cecília Matos procedeu também à transcrição de textos que documentam o que eram os locais fotografados e a vida nesse tempo que José Bárcia guardou, recorrendo a alguns testemunhos orais e a entrevistas por si realizadas a descendentes de pessoas que contactaram com o fotógrafo-artista (irmãs Adília do Carmo Cardoso e Maria da Graça Cardoso, Maria Neves Cipriano, Laura Cardoso e Maria Adelaide Chagas), a registos publicados de autores como Mário de Sampayo Ribeiro, Augusto Filipe Simões e Manuel Godinho de Matos, e a notícias da imprensa periódica (como Ilustração PortuguesaOlisipoSerõesDiário de Lisboa, entre outros títulos). 

Obra com cuidado estético assinalável, Os Dias de José Bárcia resulta de uma procura intensa nos acervos (Arquivo Municipal de Lisboa, Torre do Tombo, Museu de Lisboa, Arquivo Municipal de Palmela e espólio de Maria Ascenso, enteada do fotógrafo), mas também de factores importantes que Cecília Matos não esconde — o seu gosto pela história e pelas técnicas da fotografia, o seu interesse pela história local e o seu afecto às origens e à aldeia-natal, Quinta do Anjo. Por isso, também perpassa pelo livro uma preocupação de trazer a personalidade de Bárcia para a actualidade e de o chamar para a construção da identidade local, como refere: “Em 2023, se Bárcia fosse vivo, faria 150 anos. Agradeço-lhe a possibilidade que nos deu de viajarmos até ao passado e de ver como era a Quinta do Anjo no início do século XX, de imaginarmos como seria viver numa época ainda sem electricidade, sem telefones e sem automóveis.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1403, 2024-10-30, pg. 10.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Abril: 50 anos, 100 mulheres, 2 antologias

 


Meio século depois do 25 de Abril de 1974, torna-se imperioso haver testemunhos que contem o antes, revivam o durante e avaliem o depois, num percurso que seja construtivo e se oriente pela permanente edificação da liberdade e pelo contínuo engrandecimento da humanidade que somos. A data foi pretexto para Alexandrina Pereira desafiar uma centena de mulheres (50 do concelho de Palmela e outras tantas do concelho de Setúbal, de grande diversidade de profissões, muitas nascidas a partir de 1974) para testemunharem sobre as suas experiências, memórias e olhares sobre o feminino, registos coligidos em duas antologias, editadas com o apoio dos respectivos municípios — Abril, Nome de Mulher, para o caso de Palmela, e Liberdade no Feminino, para o de Setúbal, ambas publicadas recentemente.

Para Alexandrina Pereira, “esta variedade de testemunhos poderá ser objecto de estudo em vários meios, com enfoque nas escolas, e principalmente nos mais jovens, para que a memória não seja curta e a história não se repita”, intenção registada no volume editado em Palmela. Um segundo propósito, que completa o anterior, surge no título publicado em Setúbal, ao desejar que “cada página deste livro seja um grito de libertação perante quem foi fechando um círculo à volta da condição feminina”, poder responsável por remeter as mulheres para a “ignorância imposta por leis que as submetia às mais humilhantes situações.”

Os temas que perpassam por esta centena de testemunhos, muitas vezes eivados de reflexão quanto ao presente e quanto ao futuro (mesmo que as aprendizagens advenham do relato transmitido por familiares), são comuns às duas antologias: as condições difíceis de vida antes do 25 de Abril, as memórias da guerra colonial, as lembranças do que era a escola, a falta de liberdade e a prisão, o medo da polícia política, o papel de subserviência atribuído à mulher, o fascínio pelas promessas pressentidas com a Revolução, a força da manifestação no primeiro Primeiro de Maio, o entusiasmo perante uma figura como José Afonso, a influência e aprendizagem vindas das mães e das avós (sobretudo nos testemunhos de mulheres que nasceram após 1970), as referências ao que falta cumprir como direito e garantia de bem-estar social (no âmbito da saúde e da justiça e na afirmação da democracia e da liberdade, tópico que, em alguns casos, reacende a questão do medo e a indignação perante o populismo).

Por muitos dos testemunhos passam momentos de comoção, que foram vividos na primeira pessoa: o ter tido o primeiro cerco da PIDE aos 16 anos (Antonieta Santos), a dureza da vida da conserveira e os cenários de violência doméstica sobre a mulher (Emília Mondim), a vivência da ruralidade (Felisbela Rilhó), o medo da PIDE e dos traidores (Fernanda Pésinho), o castigo infligido na escola por uma professora esposa de um agente da PIDE a uma miúda cujo pai trabalhava em jornal que dava voz à oposição (Isabel Castan), a felicidade das aprendizagens de um percurso de activista (Natividade Coelho), entre outros que constam no volume editado em Palmela; o exemplo vindo da vida em que a mãe disse “não” à humilhação (Cátia Oliveira), a comoção ao ver com o pai a libertação dos presos de Caxias (Dina Barco), a história de família e de afirmação de identidade (Helena de Sousa Freitas), o peso de viver ao pé das instalações da PIDE  e de assistir ao “teatro de sombras” dos informadores (Isabel Victor), a história da mãe que se indignou porque o Estado não assumia a trasladação dos jovens mortos na guerra colonial (Maria Luís Bento), a dura experiência das desigualdades sociais e consequente indignação (Rita Drouillet), entre outros que povoam o livro dos testemunhos de Setúbal.

Quanto ao futuro, as ideias que perpassam são de confiança num regime livre, ainda que muitas vezes exista a apreensão quanto aos perigos — com 40 anos, Ana Pereira, de Palmela, considera: “Agora, crescida, volto a ter medo. Tenho medo de que o fascismo volte embrulhado num papel dourado coberto de populismo. Tenho medo de que as canções de Abril percam as suas palavras e nos esqueçamos de quem lutou e quem morreu pela luta. Tenho medo de que tenhamos perdido o poder da palavra. E o ‘medo’ é das palavras que mais evito usar, mas prefiro ter medo a ser inconsciente.” Helena de Sousa Freitas, de Setúbal, com 48 anos, construiu o seu texto em diálogo com a mãe, Adélia Lino Rapaz, a quem dá a última palavra no testemunho: “Se houver que desenterrar os tempos velhos, que seja para estudar os erros ali cometidos e evitar repeti-los, nunca para matar supostas saudades. E, em seguida, é devolvê-los à sepultura e enterrá-los bem fundo. Sobretudo, enterrá-los bem fundo!”

Convicção e confiança são, assim, dois pilares fortes na sustentação do futuro... construídos sobre a base da memória, que não permite que a história seja traiçoeira.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1398, 2024-10-23, pg. 10.


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Luís Osório e Sobrinho Simões: Uma conversa para semear

 


Em mais de centena e meia de páginas, a conversa flui e passeia por assuntos diversos, reflectindo e partilhando. A dada altura, fala-se de semear. “Nestes últimos anos, fui abandonando as tarefas mais políticas, mais de administração e gestão, a minha medida passou a fazer-se de recompensas imediatas e afetivas, é isso que verdadeiramente hoje me interessa. Já não semeio.” E insiste o que entrevista: “Está a semear nesta conversa.” E responde o primeiro: “Vamos ver, espero que sim, que possa ser uma boa sementeira.” Quem se deixa entrevistar é o anatomopatologista Sobrinho Simões (n. 1947) e quem pergunta é Luís Osório (n. 1971), diálogo publicado sob o título A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões (Contraponto, 2024).

Foram vários os encontros entre os dois conversadores e em diversos pontos, no Porto ou em Évora, em casa, no hospital ou no bar de um hotel, sempre para alimentar um testemunho de vida, que ficou organizado em seis partes, todas intituladas com um substantivo que abre portas para os rumos desses momentos, num itinerário entre o público e o privado — “provocador”, “aluno”, “professor”, “médico”, “político” e “homem de família”.

O diálogo é sereno, falam de (quase) tudo, numa postura de balanço seguro pela experiência de vida, sem a preocupação de esconder o tom familiar e de proximidade por vezes ou o pensamento sobre coisas mais sérias, algumas sem resposta, mostrando convicções, experiência, reflexão, fragilidades próprias, medos, importância dos outros e (algumas) certezas.

Em certos momentos não está arredio o poder irónico, como quando se fala do sentido da curiosidade — “O português só pergunta quando já sabe a resposta. Quando não a sabe, cala-se. Não somos genericamente capazes de semear, não temos atos que não sejam de interesse imediato.” Ou quando se fala de obrigações: “Somos péssimos no compromisso. (...) Somos mestres a resolver catástrofes, mas deficientes a preveni-las.” O retrato, porém, não é negativo em absoluto: “Somos uma data de coisas boas também, algumas que nos fazem únicos. (...) Generosidade. Somos extraordinariamente generosos.”

Necessariamente, nestes encontros teria de vir a questão do médico e da saúde (ou da sua falta), na forma como cada um de nós vê e sente estas realidades. Sobre o médico: “Na medicina tradicional, o médico é alguém que ajuda o outro, que sabe olhar o outro, que sabe ler nos olhos e tocar no corpo. Quem apenas sabe tudo de cor não é necessariamente alguém que compreende a condição humana. (...) Na medicina, mais de 90 por cento do que se faz são coisas de bom senso, de ternura e empatia, quando se é bom, de ter capacidade de perceber o outro, de não fazer burrices, de perguntar se tiver dúvidas. Depois, há 3 ou 4 por cento de coisas sofisticadas em que se joga a vida e a morte numa decisão que obrigatoriamente necessita de inteligência, conhecimento e muita dedicação, estudo e talento.” E sobre a saúde: “Há uma coisa que as pessoas têm de perceber, a saúde é mais importante e muito mais variável do que a doença. A doença é um alisador, os doentes ficam todos parecidos uns com os outros. Pior só se estiver morto.”

Interessantes também são as considerações sobre a família e sobre os amigos, sobre a política, sobre a crise dos comportamentos, sobre o que não se sabe relativamente ao Homem. Uma conversa que se lê com gosto, sem subserviência a conveniências sociais, em que se misturam pacificamente a perspectiva do cientista e do ser humano para quem a imortalidade “é o sonho impossível” e que é objectivo quando diz o que se perde com o envelhecimento: “Perdemos tempo, é a primeira coisa que perdemos.” No leitor, fica ainda a urgência do pensar e do perguntar, formas que são de responder aos desafios, mesmo que sejam da ordem do transcendente, como a questão da fé: “Fascinante tema, civilizacional e estruturante no que somos. Uma matéria que também me faz pensar, sempre fez. Questiono-me muitas vezes sobre a razão que nos leva a acreditar. Por que raio é que a gente acredita? Quem é religioso tem justificações transcendentais, mas para quem não tem?”

Voltando à sementeira: é impossível ficar-se indiferente a este registo, pleno de ensinamentos, ainda que eles obriguem a um contínuo questionar, forma de nos conhecermos a nós e de conhecermos o outro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1393, 2024-10-16, pg. 10.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (4)

 


Pelos poemas de Sebastião da Gama passa também o reflexo do conhecimento da história literária portuguesa e de muitos dos seus autores, uns invocados, imitados outros — por um lado, na escolha de formas e tipologias, como “vilancete”, “soneto”, “cantar de amor”, “epigrama”, “cantiga de amigo”, “écloga”, “elegia”, “ode”, “madrigal”, “cantilena” ou no recurso a formas populares como a quadra ou no uso de referências advindas da literatura oral, como as lendas; por outro, na menção de referências à lírica trovadoresca e a nomes como Alexandre Herculano, António Botto, António Feijó, António Nobre, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo, Camões, David Mourão-Ferreira, Diogo Bernardes, Eça, Fernando Pessoa (e nos heterónimos Campos e Caeiro), Guerra Junqueiro, João de Deus, José Duro, José Régio, Júlio Dantas e Nicolau Tolentino. Mas passa também a voz popular, quer por lhe dar lugar de motivo em epígrafe (“Roma”), quer pelo reconhecimento do que deve às origens (“Nasci pra ser ignorante”) ou por ir buscar a imagem do povo e de figuras que constituem a sua paisagem, impregnados do seu saber, para muitos dos seus poemas. Este conjunto possibilita-lhe que na sua obra corram o tom sério e o humor, os temas mais frequentes da literatura (como o amor, a morte, a alegria de viver, a espiritualidade, a contemplação, o espírito do local, o seu tempo, a Grande Guerra — de que foi contemporâneo—, entre outros) e o traçar de um caminho em que o lirismo se impõe, tal como legou registado num dos últimos textos que escreveu, não concluído, que seria para uma futura conferência sobre António Sardinha (incluído em O Segredo É Amar), iniciado em guisa de manifesto: “Cabe aos poetas mostrar a grandeza da Vida” — e, de imediato, lembramos o fulgor dos versos de 1944, vindos em Serra-Mãe: “A cada verso nasço… / É cada verso o meu primeiro grito / à Vida…” Dois parágrafos adiante, na mesma conferência, explica: “A nobreza da Poesia (…) está (…) nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que está; nisso de não querer saber da convenção que faz de uns temas poéticos, de outros apoéticos. Que a verdade é que não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há Poetas em face de tudo isso.”

Esta observação sobre a Poesia e os Poetas (termos que grafava com maiúscula frequentemente) praticou-a Sebastião da Gama, como demonstrou nos versos de “O Poeta” (em Cabo da Boa Esperança): “Tudo ganhou sentido num momento… / (…) / E a poesia das coisas sem Poesia, / que no olhar do Poeta dormitava, / de súbito nas coisas acordava / — tão natural, tão íntima, tão própria, / como se fora delas que nascera…”

Figura importante da geração de 50, Sebastião da Gama foi, como referiu Vasco Graça Moura (em Diário de Notícias, 18.Set.2005), um poeta “muito menos preocupado com a problemática social, tão do gosto dos neo-realistas, do que com a expressão de uma autenticidade pessoal”, reconhecendo-lhe “grande à-vontade nas formas a que recorre”, uma “arte do verso só aparentemente instintiva e espontânea” e uma vivência da poesia “como uma espécie de alimento quotidiano”, caracterizando-se a sua obra “pela subjectividade de um lirismo de intensa e por vezes quase ingénua ternura, de comunhão e partilha sentimental, de grande e romântica generosidade de sentimentos e identificação com a natureza”.

O título escolhido para esta “poesia reunida”, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em Sebastião da Gama — o desassossego do poeta na escuta e na procura, a força da palavra essencial, o mar como um dos signos de eleição e de inspiração —, aqui se encontrando os seus nove títulos de poesia até hoje publicados (entre Serra-Mãe, em 1945, e Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, em 2014), um grupo de “Poemas Dispersos”, que integra cerca de 80 poemas escritos entre 1939 e 1950, surgidos dispersamente por variadas edições (publicações periódicas, livros de curso, antologias) e o conjunto de “Poemas Inéditos”, quase 280 textos só agora publicados, datados do período entre 1939 e 1950, maioritariamente provenientes de um caderno a que o poeta deu o título de “Saudosas Recordações” e de um primeiro conjunto de poemas que constituiriam a obra Serra-Mãe, compilação de 1943, que o autor acabaria por substituir por completo.

Se a maior parte destes textos chegou até hoje, sendo possível a sua divulgação, tal é devido ao esforço de Joana Luísa da Gama (1923-2014), que juntou e preservou o que conseguiu para a reconstituição da produção literária e epistolar de Sebastião da Gama, seu marido. O Inquieto Verbo do Mar é também a obra que ela gostaria de ter visto e faz todo o sentido que seja publicado quando se assinalam duas datas “redondas” — os 10 anos sobre o falecimento de Joana Luísa e os 100 anos sobre o nascimento de Sebastião da Gama.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1388, 2024-10-09, pg. 10.

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Na apresentação pública de "O Inquieto Verbo do Mar", de Sebastião da Gama

Foi no final de tarde sexta-feira, 4 de Outubro, que a Associação Cultural Sebastião da Gama, a editora Assírio & Alvim e a Câmara Municipal de Setúbal procederam à apresentação da obra O Inquieto Verbo do Mar, volume de poesia reunida de Sebastião da Gama, que organizei, sessão em que intervieram André Martins (Presidente da Câmara Municipal de Setúbal), Lourenço de Morais (Presidente da Direcção da ACSG), Viriato Soromenho-Marques (que apresentou o livro) e eu próprio, com poemas ditos por Dina Barco e João Completo.
Aqui fica o registo da sessão, devido ao trabalho do amigo Simões Silva, com abraço grato.

domingo, 6 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (3)

 


A Arrábida tornou-se, desde cedo, o espaço e o motivo poético privilegiado de Sebastião da Gama. Se Serra-Mãe, publicado em 1945, a enaltece no título e num dos mais longos poemas, que tem título homónimo do livro, a verdade é que a serra está presente desde os seus versos mais recuados que se conhecem, assim tomando lugar de primazia nas imagens apresentadas. O poema mais antigo de Sebastião da Gama que existe é uma composição de carácter escolar sobre os reis de Portugal, texto que abre o grupo de “Poemas Inéditos”, reforçado pelo marco que ele constituiu para o percurso de leitor e de escritor em que o poeta de O Inquieto Verbo do Mar se tornou — na entrada de 16 de Março de 1949 no Diário, surge a nota que explica isso mesmo: “O Texas-Jack é dos melhores amigos da minha infância. Aprendi a ler no Texas-Jack; comecei a formar uma biblioteca no Texas-Jack; não comecei a fumar por causa do Texas-Jack. Eu tinha doze, treze anos e era um diabo. (...) Já tinha escrito os primeiros versos — uma História de Portugal — porque isso foi aos dez anos.” A partir desse texto versejado, só se lhe volta a conhecer poemas em 1939, quatro no total, tendo o segundo, o soneto “Conselho”, do mês de Julho, o irmão do poeta como destinatário, fazendo-lhe uma recomendação quanto à paixão por que este passava: “Foge pra serra Arrábida chamada / cuj’ alecrim belo perfume emana / e vive co amor dela e uma cabana.” A serra aparece, assim, como espaço de abrigo, mais do que refúgio, feliz, respirada pelos sentidos, dimensão que podemos ver em muitos poemas vibrantes de uma flora que, exaustivamente, o poeta mostra — entre flores, arbustos, vegetação rasteira e árvores, algumas trazidas para título de poemas, muitas atapetando os versos, a diversidade é grande para que o leitor se deixe enredar. No poema seguinte, de Dezembro desse ano, “Arrábida”, o nome da serra aparece apenas no título, mas o texto desenvolve os atributos que lhe conferem o merecimento dos versos — “um canteir’ abençoado / que pasma toda a gente”; “linda serra” rodeada por um “mar muito calmo / verde, azul e prateado”, que “um salmo / sói cantar, quand’ encrespado”; “vista, / que encanta muit’ e deslumbra” —, concluindo com a superlativização da Arrábida perante uma congénere, glorificando-lhe a Natureza: “do panorama a beleza, / que é mista / — mar e serra — / deixa Sintra na penumbra. / Oh, bendita Natureza!”

A temática arrabidina circula nas veias da poesia de Sebastião da Gama desde cedo, ainda que nem sempre referencie a serra nos versos, indicação muitas vezes substituída por um elemento complementar, não literário, como a indicação do local em que o texto foi escrito. Certamente próxima desta visão está a admiração do poeta por Frei Agostinho da Cruz, o eremita que passou na Arrábida os derradeiros catorze anos da sua vida e que também sobre ela poetou. As referências do poeta do século XX ao seu “irmão” do século XVI surgem evidentes na epígrafe com que abre Serra-Mãe, construída com versos do franciscano — “Oh Serra das Estrelas tão vizinha: / Quem nunca de ti, Serra, se apartara...” Na mesma obra, a imagem do frade passa ainda por “Elegia para a minha campa” e por “Versos para eu dizer de joelhos”. E, nos títulos subsequentes, ele aparece em A Região dos Três Castelos (1949), Campo Aberto (“Palavras a Frei Agostinho”), Itinerário Paralelo (“Confidência”), Estevas (“Romance do Lima”), Diário (em registo de 11 de Outubro de 1949), O Segredo É Amar (“Páginas de Diário” e “Folhas de Jornal”), havendo ainda outros textos que o referem, presentes nos “Poemas Dispersos” (“Frei Agostinho da Cruz”, em dois sonetos) e nos “Poemas Inéditos” (“Carta a alguém”, “Aguarela” e “Saudades”). O ciclo de três séculos que separa a obra dos dois autores, tendo ambos como pano de fundo para a sua poesia a serra da Arrábida, bem comprova a presença da paisagem na tradição literária portuguesa, particularmente deste espaço, acrescendo que, para Sebastião da Gama, a serra foi motivo inspirador, criando, por isso, umas figuras míticas, as “Arrabídeas”, quais ninfas que povoariam os mares arrábidos (presentes nos poemas “Fonte”, de 2 de Dezembro de 1941, e “Luar da Arrábida”, de 23 de Abril de 1942).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1384, 2024-10-03, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).