quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Francisco de Paula Borba biografado (3)



Ao biografar o avô, Francisco Moniz Borba confessa a angústia do investigador perante a reconstituição do percurso - “Até há poucos anos, senti sempre a falta de algo que, escrito pelo seu punho, em discurso directo, nos desse a conhecer, de forma mais clara e objectiva, o que era o seu pensamento e o que na realidade o motivava nas suas iniciativas e realizações”, algo que se impusesse às entrevistas dispersas pelos jornais ou aos excertos que a imprensa divulgava dos discursos das cerimónias.

A tenacidade do biógrafo e o arquivo de família permitiram, no entanto, que a esta biografia sobre Francisco de Paula Borba chegassem dois documentos com a marca do biografado, ambos incluídos no livro como anexos: um, de 1920, “Relatório da Associação de Beneficência da Misericórdia de Setúbal relativo ao triénio 1917-18, 1918-19 e 1919-20”, que ultrapassa em muito o típico relatório circunstancial para revelar uma forma de pensamento própria relativamente aos assuntos abordados; outro, presumivelmente de 1932 ou do ano seguinte, uma “nota sobre a conferência a realizar em Évora”, em que o médico setubalense falou “sobre a assistência em geral e sobre a forma como a assistência era efectuada em Setúbal”.

O primeiro documento está imbuído da emoção e da sensibilidade do seu redactor, começando por uma apreciação crítica relativamente aos agentes da assistência social - “é quase sempre a iniciativa particular quem a alimenta e desenvolve”, mencionando, para o caso de Setúbal, uma rede de parceiros (como  as organizações operárias dos Montepios de Socorros Mútuos, a Cruz Vermelha ou a Associação Vicente de Paula, entre outros) que em muito ajudaram a Associação de Beneficência da Misericórdia. Depois, relata a obra no triénio, destacando a instalação da farmácia no edifício do hospital, a construção de uma padaria num anexo do hospital para fazer face à escassez de géneros trazida pela Grande Guerra, a dignificação da casa mortuária ou as condições da lavandaria como medida de higiene pública, entre outras iniciativas. Merecem ainda realce a coerência mostrada quanto ao Asilo Barradas, defendendo que deveriam ser cumpridas as disposições da benfeitora quando havia quem propusesse, em nome da sustentabilidade financeira, a diminuição do número de assistidas, bem como, para registo da história local, a indicação do início da pneumónica em Setúbal, em Setembro de 1918, sendo os primeiros pacientes da zona de Rio Frio, um dos quais faleceu antes de chegar à enfermaria.

O segundo documento é um bom resumo do pensamento de Francisco de Paula Borba quanto à prática da medicina e da assistência, muitas vezes crítico da demagogia em torno desta questão, como acentua no início da prelecção: “Muitas são as pessoas que emitem a sua opinião, mas menos as que se preocupam com os deveres que todos devemos ter para com o nosso semelhante.” O Estado também não é poupado - “A assistência feita pelo Estado é sempre cara e muito burocrata. Falta-lhe o desinteresse material e o muito do sacerdócio indispensável para o bom exercício de uma assistência profícua e útil.” Fazendo valer circunstâncias como a riqueza da localidade, o clima, o espírito religioso e a gestão dos óbolos, enuncia um programa do que deveria ser a organização da saúde pública, desde o posto médico nas aldeias até aos hospitais centrais de Lisboa, Porto e Coimbra, passando pelos hospitais concelhios e pelos distritais, valorizando a iniciativa particular, sobretudo das Misericórdias. Para Paula Borba, a mensagem essencial estava na vontade de que “a assistência continue sendo acarinhada e protegida pelas almas benfeitoras para todos os que compreendem o sagrado dever de fazermos aos outros o que desejamos para nós.”

Não admira, assim, a quantidade de retratos emotivos que sobre Francisco de Paula Borba foram traçados aquando do seu passamento em 26 de Setembro de 1934. Esta biografia é a homenagem justa nos 150 anos do seu nascimento e o avivar da memória sobre uma figura incontornável na identidade setubalense.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 984, 2022-12-21, pg. 21.


sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Francisco de Paula Borba biografado (2)


Grande parte do percurso biográfico de Francisco de Paula Borba era já conhecido, sobretudo no seu papel de médico e de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, muitos pormenores tendo já sido trazidos ao saber público por Francisco Moniz Borba em trabalhos anteriormente publicados. Se, na obra Francisco de Paula Borba - Vida e Obra (1872-1934), o leitor fica a conhecer alguns aspectos da história familiar (origem, casamento, constituição da família, aquisição da quinta da Gâmbia), também por aqui passam as ideias e a forma de estar em sociedade do biografado, quer pela forma como se impôs enquanto profissional (inovando, construindo e governando a saúde local, visando a existência de melhores condições, no hospital e na Misericórdia), quer pelo relacionamento mantido com o operariado e com os mais carenciados (prestando-lhes assistência e envolvendo-se pessoalmente em algumas causas sociais, como a do pagamento da caução para dez trabalhadores serem absolvidos, depois de destruírem, por protesto, várias máquinas numa fábrica), quer pela recusa na aceitação de cargos públicos (republicano, renunciou a cargos políticos, argumentando com a sua actividade clínica).Cedo começou em Setúbal o reconhecimento pela figura de Paula Borba - ao saber-se que fora mobilizado para médico miliciano em 1917, a população manifestou-se, exigindo do poder político que o médico se mantivesse em Setúbal. Conseguido o intento, uniu-se a cidade para lhe fazer uma oferta. Porém, ao saber desta intenção, o seu pedido foi no sentido de destinarem a colecta feita à construção de um balneário, estrutura que era fundamental para o fomento da saúde pública. As homenagens, contudo, foram muitas ao longo da vida, com particular destaque para a atribuição do estatuto de “cidadão de Setúbal”, a primeira figura a receber tal título honorífico.

Para lá do reconhecimento institucional, houve também a gratidão individual do cidadão comum, muitas vezes apoiado pela acção de Paula Borba, como o prova a quantidade de poemas feitos em seu louvor - em 1932, compunha João Henrique um soneto sobre o médico, do grupo de “auto-silhuetas”, em que o retratado se contava na primeira pessoa: “Se adoro, e muito, o berço onde fui nado, / formosa ilha cujo amor cultivo, / Não amo menos a terra, à qual cativo / Me traz o encanto do formoso Sado. // (...) // Mas pertence esta vida aos pobrezinhos, / E é tão curta - por longa que eu a conte - / Que a absorve o meu amor pelos velhinhos.” Em Outubro de 1934, pouco tempo depois do falecimento de Paula Borba, “uma sua protegida”, Mariana Pereira, publicava largo conjunto de quadras “em homenagem ao distinto médico e benemérito”, cantando: “Está Setúbal de luto / com sentimento profundo / Morreu o pai da pobreza / Outro igual não há no mundo. // (...) // Ai que se eu pudesse / A minha vida por a dele trocar / Eu queria ser enterrada / Para ele neste mundo ficar. // (...) // Para nós era um Anjo / Digo e torno a repetir / Um homem como o Dr. Borba / Não veio nem torna a vir.”

Com razão regista Fátima Ribeiro de Medeiros, na abertura do prefácio a este livro, que “há pessoas raras que conseguem delinear e marcar o percurso dos outros, dos seus contemporâneos e dos que lhe virão a seguir na dinâmica das gerações”, mencionando o caso do “Dr. Paula Borba, como lhe chama desde sempre o povo, como se dissesse pai ou avô”, que classifica como “um dos nossos grandes, sem dúvida”, que optou por Setúbal para “aqui construir o seu futuro, contribuindo para o sucesso e crescimento da cidade.”

J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 979, 2022-12-14, p. 8.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Francisco de Paula Borba biografado (1)



O nome de Francisco de Paula Borba (1872-1934), açoriano nascido em Angra do Heroísmo, é conhecido pelos setubalenses através da toponímia (desde 1935), de obra de arte pública (busto, também desde 1935), do balneário e do lar de que é patrono (desde 1926 e 1945, respectivamente). Um esboço biográfico sobre esta personalidade surgiu em 1986, Dr. Francisco de Paula Borba - 1º Cidadão Honorário de Setúbal, assinado por Rogério Claro, obra produzida na sequência do cinquentenário do seu falecimento. Recentemente, a propósito do 150º aniversário do seu nascimento, pela mão de Francisco Moniz Borba, surgiu o título Francisco de Paula Borba - Vida e Obra (1872-1934), obra com apreciável acervo fotográfico que contém ainda documentos interessantes para se conhecer o pensamento do biografado.

Logo no início da narração, o autor procede à sua declaração de interesses, confessando a proximidade com a figura sobre quem escreve, mas também a razão de ser deste projecto, alicerçado nas aprendizagens e no exemplo: “O Dr. Francisco de Paula Borba é meu Avô paterno e esta questão do parentesco dificulta-me naturalmente o indispensável distanciamento para reflectir e escrever com independência sobre a sua Vida e Obra. Talvez por isso, este livro, que sempre desejei escrever, tenha sido um projecto de gestação demorada, pela responsabilidade que decorre desse facto, mas também pela pesada herança do seu enorme exemplo de vida, que me acompanha desde a infância, e que, devo confessá-lo, me ajudou em muitos momentos da minha vida, alguns deles bem difíceis, a aceitar injustiças, a perceber melhor o que é a tolerância e a profundidade afectiva contida na tão gratificante prática da solidariedade.” No termo do trajecto, o narrador não esconde a emoção das descobertas e das memórias, possibilitada pela escrita: “Cheguei ao fim! Se afirmasse que não me emocionei algumas vezes durante a - para mim longa - elaboração deste trabalho, mentiria. A consulta de muitos documentos, a sua reprodução com o objectivo de serem preservados e publicados, foi em certos momentos regressar à infância, ao ambiente onde cresci e onde a diáfana figura do meu Avô pairava no ar que se respirava naquela casa. (...) Sinto uma enorme gratificação de conseguir celebrar o passado e deixar este legado. Graças a Deus! Invade-me uma formidável sensação de liberdade.”

As considerações de Francisco Moniz Borba caucionam uma leitura dominada por três importantes vertentes: primeiro, revelando a importância dos arquivos familiares como fundamentais para a história local e para a investigação, detentores que são de elementos quase únicos que ajudam a construção da personalidade e do papel desenvolvido, além de carrearem informações adicionais sobre aspectos vários da vida da urbe; por outro lado, transportando para a biografia a emoção da proximidade conhecedora, veiculada pelas pequenas histórias do quotidiano lembradas em família, como aquele teste à sua popularidade, que levou um transeunte a impedir a tentativa de furto do velocípede do médico, gritando “Olha a bicicleta do Dr. Borba, agarra que é ladrão, agarra que é ladrão!”; finalmente, porque, no gesto de descobrir o antepassado que nunca conheceu (o nascimento do neto ocorreu sete anos após o falecimento do avô), Francisco Moniz Borba partilha esse desvendar, dando a conhecer essa importante figura a quem chamaram “o amigo dos pobres”.

Durante uma centena de páginas, o leitor acompanha a chegada de Francisco de Paula Borba a Setúbal em 1898 (tendo começado a dar consultas na Farmácia Abreu, depois Farmácia Sartóris), ano em que também concluiu a licenciatura em medicina, e a acção desenvolvida na cidade em prol da assistência e da dignificação das condições de vida.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 975, 2022-12-07, pg. 14.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Estranheza dos tempos como pretexto de escrita



Os tempos andam estranhos por causa do que nos agride, do que nos choca. Tais agressões tornaram-se pretexto de escrita para 22 autores ligados à Casa da Poesia de Setúbal sob o título de Diário de Tempos Estranhos - Entre a pandemia e a guerra, obra em duas partes, correspondentes aos dois diferentes momentos vividos - a pandemia, desde 2020, e a guerra na Europa, desde Fevereiro.

O tempo da pandemia foi o tempo da descoberta e da aprendizagem do viver com novas regras, vindas de novos medos. Recorda Alberto Vale Rêgo os tempos em clausura, procurando “coisas boas e com sentido, mas fora do que faríamos normalmente” e vivendo “outras de que não ficará memória, mas que servem para fazer andar as horas à espera da normalidade que tarda.” Mais dramática é a noção de Alexandrina Pereira: “O tempo parou, o tempo é vulcão, / Nele ardem as dores que são sufocadas, / Calcadas, guardadas, na alma sofrida, / Respira-se Morte, procura-se a Vida”.

A estranheza torna-se tanto maior quanto a peste se aproximou sub-reptícia, operando mudanças bruscas - “o nosso relógio interno já não tem percepção do tempo e a vida está mesmo virada do avesso” (Fernando Pereira); “os povos trabalham em casa, escondidos” (Inácio Lagarto); “o antes som das gentes / deixou de se ouvir” e “nas janelas / as pessoas pareciam sombras chinesas” (Isabel Bastos Nunes); a falta dos abraços aos mais próximos e as ausências, como mencionam Isabel Melo (“Que tempos são estes, Mãe, / Em que tenho medo de ter receio de te abraçar”), José-António Chocolate (“O lugar deserto na mesa é que se sente / (...) / e hoje me dói fundo por estares ausente.”) ou Fernando Alagoa (“Queria tanto dar-te um abraço, / e ficar assim, / em silêncio, / só pelo prazer desse enlace.”). A pandemia chega à metaforização sob o signo do horror por Luís Pinho, denominando-a como “Adamastor”, recurso ao imaginário camoniano da destruição.

Todavia, há também o sinal positivo pela voz de Linda Neto, cuja mensagem sobre o confinamento caminha no sentido do reencontro do eu com a sua identidade, no caminho do autoconhecimento e da renovação.

O segundo grupo de textos, sobre a guerra, pauta-se pelo protesto e pela indignação, em que o mal, pintado com as cores da ambição descontrolada (António Calado), da alimentação do negócio da guerra (António Galrinho) e do caos mostrado nas imagens de violência sobre o homem (Maurícia Teles), vai merecendo o repúdio.

Motivações para este conflito são apontadas por Arnaldo Ruaz, enunciando as cores do “triste quadro” da guerra, uma sinfonia de horrores. O desespero em busca da vida, no meio da conflagração, paira no poema de António Manuel Ribeiro, olhar medonho sobre a rapidez com que a destruição se manifesta: “Se houver tempo / Voltaremos a falar; (...) // Se houver tempo / E uma esquina de pé.” A insensibilidade de quem determina a guerra esbarra com a sensibilidade de quem por ela sofre - Fernando Pereira recorda a infância, num excerto digno de figurar em qualquer antologia sobre os avós: “O meu avô foi à guerra e só voltou quando a minha avó ficou viúva. (...) O colo da minha avó nunca mais foi às cores, ficou sempre preto. Não percebi aquela mudança, porque, vestida de preto, a minha avó ficou mais triste.”

A contrariar este negrume extremo, surgem palavras de esperança, coloridas, como Carlos Fernando Bondoso prevê: “quem me dera / a novidade de uma flor / branca amarela de todas as cores / num campo de guerra”.

Tempos estranhos, estes! Lentos, os primeiros, sob o massacre diário das mortes, números vertidos no conta-gotas dos dias; rápidos, os segundos, desmoronamento vertiginoso, retrato do inferno e do absurdo. Ambos trazidos pela escrita enquanto espaço de reflexão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 971, 2022-11-30, p. 20


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Manuel Mendes na rota do Douro



“A terra e os homens reduzi-os à fruste expressão da arte que é meu ofício. Apenas uma molhada de singelas páginas de ‘roteiro’, colhidas pelos montes, ao sabor do acaso, a que à falta de melhor chamei ‘sentimental’, decerto por me haver tocado o coração quanto vi no meu deambular por essas serranias e esse prodigioso rio.” Assim Manuel Mendes (1906-1969) apresenta o seu livro Roteiro Sentimental - Douro (1964), o primeiro de uma trilogia que manteve a expressão “roteiro sentimental” no título, conjugando viagem e afecto pela via da escrita.

São quinze crónicas produzidas entre 1961 e 1963, inspiradas pela paisagem duriense, fortemente dominadas pela figura humana, sofrida e olhada de uma perspectiva de que não está alheio o neo-realismo - em São Salvador do Mundo, perante a dificuldade de exercer o cultivo no alcantilado da paisagem, o viajante anota: “Com assombro e com angústia, fica-se a pensar no destino desta mísera gente, na sua existência de bichos abandonados e bravios”, numa serra que é “teatro das dores e infortúnios deste homem tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifício temos de nos respeitar com respeitosa admiração.”

Manuel Mendes não se deixa impressionar apenas a partir do longe e a sua curiosidade leva-o a demandar os aspectos da vida naquele cenário que escorre desde Barca de Alva até ao Porto, com pormenores do quotidiano humano. Exemplo perfeito é o registo “Douro abaixo”, a mais longa crónica, relato da descida do Douro desde Pinhão até ao Porto num barco rabelo, diálogo com a Natureza e com os homens, dando conta do vocabulário específico dos “marinheiros” do rio e da sua arte, aproximando o leitor das conversas do arrais, o mestre Colino, homem que vai explicando e se sente a entrar para a história, não querendo que o ouvinte perca pitada e advertindo o viajante: “Pegue no livrinho e assente!” À mistura, são tecidas considerações sobre o que viria a ser o amargo futuro destes homens e desta região por razões tão diversas como a preferência por outros meios de transporte do vinho ou o papel dos ingleses sobre a economia local.

Estas viagens são pretexto para evocações de figuras como Camilo Castelo Branco (que andou fugido por Sabrosa cerca de 1848), Barão de Forrester (o inglês que pugnou pela qualidade do vinho do Porto, desenhou um mapa do Douro e acabou afogado no rio num acidente de barco), Fanny Owen (a jovem protagonista de uma história de amor dramática), Aquilino Ribeiro (cuja obra “será por longo tempo recordada”), Guerra Junqueiro (na visita a Quinta da Batoca, nas imediações de Barca de Alva) e Raul Brandão (no derradeiro texto, em olhar sobre a Cantareira, onde o Douro tem a foz).

Em torno do rio, há também a oportunidade para a lembrança do que foi a praga da filoxera no século XIX (lembrada pelos “mortórios” na paisagem), da destruição das cheias (sem se saber se “é o rio que transborda” ou “as coisas que por si irremediavelmente se afundam”), do movimento da vindima (e do retrato social dos homens e mulheres que ali labutam), da arte dos pedreiros fixadores dos socalcos com a participação das mulheres, dos trabalhos durante o inverno. E há também a evocação do momento de festa que é consoada (e da “roupa velha”) ou dos sabores, como as histórias em torno da alheira.

A dado passo, classifica Manuel Mendes estes seus escritos como “páginas de estudo e evocação”, resultantes de “empenho do espírito, amor à cultura”. E o leitor não pode deixar de se impressionar por estas telas que eternizam momentos do passado da região duriense, talvez indispensáveis para a fixação da identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 966, 2022-11-23, pg. 9.


quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (2)



Ao longo dos textos de Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, as recomendações encontram também espaço, haja em vista os apelos aos leitores para que “fiquem em casa”, eco dos avisos vindos das estruturas da saúde pública e do medo sentido no vazio das ruas. No entanto, as saídas estritamente necessárias (por exemplo, para ir passear os animais de companhia) foram hipótese que logo serviu para alegrar os caninos, em passeatas contínuas, como sucedeu com “Kiko”, o cão visto a ser passeado por uma senhora e, passados vinte minutos, a ser acompanhado por um jovem, sequência que causou estranheza a Maria do Carmo Branco: “O rapaz, a sorrir, explicou que, como só havia um cão no prédio onde morava, todos os condóminos vinham passear o cão com autorização da dona”..., história que merece nota irónica - “um negócio a ponderar!”

A imaginação tinha de encontrar alternativas para este “desembrulhar dos dias” (João Santiago), enquanto a televisão debitava o “boletim do dia da DGS” e a “evolução da curva” para demonstrar a progressão pandémica, numa invasão informativa, como Fátima Frazão Lopes enuncia em 28 de Março: “Em casa, acordamos com o Coronavírus, tomamos as refeições com o Coronavírus, somos bombardeados até à exaustão com as mortes provocadas pelo Coronavírus em Portugal, na Europa e no resto do mundo. (...) O Coronavírus ‘infectou’ as televisões, as rádios, os jornais, as revistas e as conferências de imprensa.” Desse mesmo dia é o registo de Fernanda Resende, marcada pelo retiro obrigatório e pela busca de uma nova forma de relação com o mundo - “aqui estou em prisão domiciliária, a cumprir a pena que me foi imposta ‘isolamento social’. (...) Procuro reinventar o tempo em conversas com o meu interior.” E conclui: “Hoje não se vive, aprende-se a viver.”

Esta reinvenção passa por cenários gizados por novas coordenadas: “a magia de um brinde com taças de champanhe erguidas do outro lado da cidade”, sobre um aniversário celebrado à distância, ou o reparar na roupa também “em quarentena de utilização” ou nos “sapatos que esqueceram o jeito de andar” (Malice Silva); o cumprir tarefas desde há muito adiadas, como “pensar, escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver com a comunidade de familiares” e “aceder à prática do maravilhoso culto da imaginação” (João Santiago); a procura da proximidade para combater o frio do afastamento através daquele “engenho tecnológico que o homem criou para aproximar as pessoas”, permitindo o contacto com os familiares mais directos, sobretudo “aqueles ramos maravilhosos que de nós partiram”, vencendo-se a irrealidade daqueles dias (Sanchez Antunes, o mais assíduo frequentador desta antologia).

Alguns poemas perpassam também por estes Dias Entreabertos, com destaque para aqueles que surgem em nome de uma memória - Resendes Ventura (1936-2013) e Maria de Sousa (1939-2020), trazidos por Fátima Ribeiro de Medeiros, o primeiro a propósito da energia da palavra, partilhado no Dia Mundial da Língua Portuguesa (7 de Maio), a segunda, com um poema produzido quatro dias antes de saber que estava infectada pelo vírus que a vitimaria passados dez dias (13 de Abril), testemunho forte de humanidade: “Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vocês / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos / partilhados e / queridos / (...) / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.”

A última intervenção é de Arlindo Mota, em mensagem para Ana Bela Aleluia, uma quase justificação para este conglomerado de textos, registando “a perplexidade, a angústia, a incompreensão pelo desconhecido que nos amputa tudo aquilo que faz com que a vida mereça ser vivida”. Momentos intensos de emotividade, surgidos na oportunidade de um diário partilhado, conferindo à literatura o testemunho das dores dos tempos.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 961, 2022-11-16, p. 9.


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (1)


 

O estado de emergência, por razões de saúde pública ligadas à pandemia, foi decretado em Portugal em 18 de Março de 2020. Situação inusitada, abalou as formas de estar, de viver, de partilhar. No dia seguinte, Arlindo Mota trocava mensagem com os frequentadores da Universidade Sénior de Setúbal retransmitindo uma ideia de Maria Alice Silva: “Estes dias, em que temos de reinventar ocupações, para encher as horas que teimam em ficar presas no relógio do tempo, dão lugar a muita reflexão e descoberta... Estes textos poderiam depois ser lidos e reflectidos nas aulas futuras.”

O desafio foi aceite por duas dezenas de voluntários e começaram os registos diarísticos de pequenos acontecimentos, de quotidianos simples, de olhares através da janela, de medição do mundo e da vida numa escala que era desconhecida. Dessa produção nasceu o livro Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, editado pela UNISETI (2022), reunindo 24 autores, incluindo a poeta brasileira Vânia Lopez (que, do outro lado do Atlântico, quis colaborar no projecto) e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), imunologista ceifada pela pandemia, de quem são transcritos três poemas, um deles escrito dez dias antes de falecer.

O tempo de escrita decorre entre 19 de Março e 27 de Julho (correspondendo ao tempo que faltava para finalizar o ano lectivo da UNISETI), sendo o mês de Abril o mais frequentado, com mais de quatro dezenas de participações.

Entrar por estes “dias entreabertos” possibilita uma série de lembranças das pequenas descobertas e aprendizagens, dos aspectos de um dia-a-dia a construir fora da normalidade, que enternecem pelo que avivam relativamente àquele tempo. Um exemplo: o açambarcamento de papel higiénico que sucedeu nos supermercados, tratado num texto repleto de ironia por Arlindo Mota, mais parecendo estar-se numa contemplação do fantástico.

Perante um viver fora do que era a normalidade, os diaristas vão reconstruindo os seus universos e partilhando essas novas combinações - Ana Maria B. entende, logo em 19 de Março, que “estes tempos difíceis são de facto uma prova a todos nós”, retirando uma conclusão: “Se não aproveitarmos isto para um ‘acordar’ e uma mudança de mentalidade e paradigma, se não aprendermos a perceber o que é realmente importante, então todo este esforço, sacrifício e vidas perdidas não servirá para nada.” Entretanto, o ciclo da Natureza não se alterava e, segmentada pela tristeza, Malice Silva dava, no dia seguinte, conta da chegada, “enrolada na chuva, escondida numa máscara que lhe cobria o rosto”, da Primavera. Com o afectar das relações de convivência diária graças ao isolamento, os canais de comunicação alteram-se também e uma volta pelo parque, bem cedinho, permite a Maria do Carmo Branco, num percurso quase solitário, aproximar-se da casa de algumas amigas, “falando elas da janela e eu da rua”.

A invenção de formas alternativas para as rotinas leva Malice Silva a duas descobertas repletas de simplicidade: a primeira, os passeios na varanda - “na minha varanda da frente, posso dar 40 passos, vinte em cada direcção, e outros tantos na varanda das traseiras, o que, somado, dá 80 passos em cada ‘caminhada’. Não é mau!”; a segunda, a atenção da vizinhança - “descobri, nas janelas dos prédios em redor, vizinhos que nunca tinha visto.” Nestas rotinas, emerge também o tempo para os pequenos prazeres, como sucede com José Manuel Fernandes, ao pensar sair para um passeio no jardim e uma passagem pelo café para comer um pastel de nata: “De repente, voltei à realidade: estamos em quarentena. Regressei a casa e aproveitei para ler um livro. Agora tenho tempo de sobra para ler...”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 951, 2022-11-02, p. 10.