sexta-feira, 3 de maio de 2024

Álvaro Laborinho Lúcio e a pergunta fundamental (2)



De perguntas é feito o percurso na prática da justiça, sobretudo para se entender que “a justiça radica no povo”, embora a sua administração passe para determinadas mãos em função de um contrato social. E não é sem um respeito profundo que lemos, trazidas por Álvaro Laborinho Lúcio para este A Vida na Selva, as histórias do juiz do Soajo, da ética da polícia, do estatuto carregado na simbologia da beca judicial, da reflexão que pode emergir do que seja “fazer justiça pelas próprias mãos”. Perguntar deve ser uma preocupação contínua e persistente, sendo um desafio o texto que nos fala sobre a carreira, num percurso entre a estafada pergunta “que queres ser quando fores grande?” e a pertinente questão “agora, que és grande, queres ainda ser o quê?”, alerta que obriga a um compromisso com a formação constante, com um aprender permanente, atitudes essenciais para se ultrapassar fenómenos como a incerteza e a complexidade que nos invadem.

Questões da literatura e da leitura passam por outros capítulos, onde surge evidente a necessidade de um pacto entre escritor e leitor em termos de plausibilidade do narrado, sem que a ficção vire mentira e aniquile o pensamento crítico do leitor, e de valorização da palavra, esta perspectivada também no longo trajecto feito entre princípios como a “palavra de honra” e a necessidade de se “pôr por escrito”, ambos capazes de garantir, em tempos diferentes, a saúde do compromisso. É de literatura e do seu papel que se fala quando é evocado o tio que deixou umas memórias intituladas “Todos Vivos”, onde é dada vida às personagens das suas leituras; é de literatura e dos princípios que se fala quando Natália Correia, convidada para falar sobre estética e ética, vira costas porque nem uma nem outra têm de ser tratadas sob a carapaça do chamado “intelectual”; é de literatura e da sua universalidade e representações que se fala quando se recorre a Jorge Listopad para evocar a presença do teatro nas cadeias, formas de ver e de pensar outras vidas. E é também de leitura que se fala pelas muitas referências a textos de outros que povoam estas crónicas.

As perguntas andam também pela área da educação e da escola, sobretudo na concepção de uma carta que poderia ser dirigida a Paulo Freire a glorificar a escola pública, motivo para destruir sistemas como o da exclusão ou o de “dar a matéria” e para construir um tempo e um espaço propícios para “desenvolver o máximo das capacidades de cada um dos seus alunos e de cada uma das suas alunas, por forma a que uns e outras possam participar activamente na vida pública - política, económica, social e cultural.” E, a propósito da escola, a defesa de uma utopia: que “o dia de abertura das aulas, em cada ano, deixe de se apresentar como tempo de conflito político, partidário, reproduzindo sempre o mesmo desinteressante rosário de argumentos esgrimidos a favor ou contra o sucesso do arranque, e, em vez disso, seja um dia de festa nacional: o dia do regresso às aulas.” Utopia deve ser, uma das nossas utopias, por amor à escola e ao saber ser, mas que só será plena se pensarmos na forma de a realizar...

Socorramo-nos de um outro texto de Álvaro Laborinho Lúcio que bem podia integrar este A Vida na Selva - publicado em 2023, em reduzida tiragem, O Velho e a Escola (Entre o Ensaio e a Ficção) (editora Nova Mymosa), traz-nos uma personagem, o Velho, de quem nos é dito, logo no início, que procura “projectar o ser humano para fora da indiferença, da apatia, da desistência e do desinteresse, em suma, da banalidade”. Será que se consegue chegar aí numa escola que valoriza palavras como aquelas que indignavam o Velho - “sucesso, exigência, laxismo, disciplina, indisciplina, desobediência, mérito e tantas outras”? E porque não substitui a escola, a sociedade, essa semântica por outra que contemple termos como “arte, democracia, direitos humanos, cidadania, conhecimento”? Conclui o Velho: “Estas, sim, são palavras que navegam, que traçam novas rotas, que enchem de valor o terreno onde prevalece a força da ética e da liberdade”.

Por todo este conjunto de ensaios construídos sobre histórias, vividas ou inventadas, corre uma pergunta fundamental — que sentido para a vida? Esse é o desafio permanente, mas obrigatório. E apetece, de novo, repetir o que fica dito no posfácio de A Vida na Selva, construído por Álvaro Laborinho Lúcio, leitor do que escreveu: estes textos foram relidos e reaparecem “sempre com o fito de chamar e de juntar vizinhos.”  Para que não tenhamos como resposta, no fim do trajecto, uma desculpa semelhante àquela que a mulher deu ao homem seu vizinho para explicar o porquê de nunca se terem conhecido antes — “Pudera! Éramos vizinhos!” O desafio está lançado...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1291, 2024-05-02, pg. 10.


Sem comentários: