A partir do poema “Nocturno”, podemos descobrir como linhas fortes da poesia de Sebastião da Gama a atenção dada ao mar (calmo ou bravo, rumorejando ou espelhando, no ambiente de paisagem ou de trabalho para os pescadores), aos animais que povoam os espaços frequentados pelo poeta, ao céu (que se manifesta pelas estrelas, pelo luar, pelo sol), ao silêncio (que não significa ausência de ruído em absoluto, mas possibilidade de captação dos sons que constituem a orquestra da Natureza, apresentando-se esta como um Outro com quem o poeta se relaciona). Esta junção do silêncio com os sons da Natureza surge bem conciliada no poema “Tempestade”, datado de 4 de Novembro de 1951 (Sebastião da Gama escreveria apenas mais cinco poemas), inserido em Pelo Sonho É que Vamos: “O Vento enchia o Mundo. Mal deixava / lugar para a tremenda voz das ondas. // Mas era o Mar apenas que se ouvia.”
Campo Aberto foi publicado em meados de Fevereiro de 1951, não tendo incluído o poema “Viesses tu, Poesia...”, composto a 10 desse mês, depois inserido na obra póstuma Pelo Sonho É que Vamos (1953). Neste poema, a poesia é associada a uma fada, dotada de vara mágica, que tem o poder de contribuir para a nomeação e para a (re)descoberta — “Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição, presença, / sinal...”. Força (re)criadora, responsável por conferir naturalidade e beleza ao universo, garantia de equilíbrio, regeneradora, numa relação de proximidade e intimidade com o poeta, num tratamento por “tu”, ela é invocada no seu poder: “Ó Poesia!, viesses / na hora desolada / e regressara tudo / à graça do princípio...”
Ruy Belo foi o primeiro prefaciador de Sebastião da Gama que não o conheceu pessoalmente, tendo mesmo dado nota desse pormenor no texto que escreveu em 1970 para abrir a segunda edição de Pelo Sonho É que Vamos, vinda a público no ano seguinte. Considerando ser este “o seu melhor livro”, depois de um percurso de crescente maturidade, afirma sobre esta obra: “bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza.”
Não será difícil ver a proximidade entre “Viesses tu, Poesia...”, a apreciação de Ruy Belo e aquilo que Sebastião da Gama pensava da poesia e da forma de a mostrar aos seus alunos, quando registou no Diário, na entrada de 9 de Março de 1949, a justificação para ter organizado uma Semana da Poesia: “O Poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim... E reparou que os homens estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira ‘O segredo é amar’...” Depois, vem a justificação prática deste desvendar o poder transformador da poesia e a necessidade de o incutir nos jovens alunos: “É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora.”
O poeta faz questão de se manter fiel à sua temática, aos seus motivos inspiradores, ao seu cenário de poesia, num trajecto quase linear de convicção — data de 28 de Dezembro de 1948, um pequeno poema, “Arte poética”, divulgado numa das mais recentes obras póstumas, Estevas (2004), em que advoga o fim do seu estado de poeta se existir o desvio na sua motivação: “Quando em meus versos nada houver que lembre um ninho, / então sim! — chorem a minha morte.” Talvez não tenha havido ninguém a melhor definir os conteúdos da poesia de Sebastião da Gama que não ele próprio — se recuarmos no tempo até 1942 (ano em que tinha 18 anos), o poema “Testamento”, datado de 20 de Janeiro, até agora inédito, pretendia garantir as marcas por que o poeta queria ficar alinhado, sugerindo, em tom algo humorístico, que, após a sua morte, fosse enterrado na Arrábida, rodeado de alecrim e de rosmaninho, com um letreiro feito de conchas contendo os seguintes dizeres: “Aqui dorme seu sono derradeiro // (...) um doido que viveu a versejar / a Arrábida, a Mulher, a Lua, o Mar.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1378, 2024-09-25, pg. 10.
OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).
Sem comentários:
Enviar um comentário