domingo, 6 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (3)

 


A Arrábida tornou-se, desde cedo, o espaço e o motivo poético privilegiado de Sebastião da Gama. Se Serra-Mãe, publicado em 1945, a enaltece no título e num dos mais longos poemas, que tem título homónimo do livro, a verdade é que a serra está presente desde os seus versos mais recuados que se conhecem, assim tomando lugar de primazia nas imagens apresentadas. O poema mais antigo de Sebastião da Gama que existe é uma composição de carácter escolar sobre os reis de Portugal, texto que abre o grupo de “Poemas Inéditos”, reforçado pelo marco que ele constituiu para o percurso de leitor e de escritor em que o poeta de O Inquieto Verbo do Mar se tornou — na entrada de 16 de Março de 1949 no Diário, surge a nota que explica isso mesmo: “O Texas-Jack é dos melhores amigos da minha infância. Aprendi a ler no Texas-Jack; comecei a formar uma biblioteca no Texas-Jack; não comecei a fumar por causa do Texas-Jack. Eu tinha doze, treze anos e era um diabo. (...) Já tinha escrito os primeiros versos — uma História de Portugal — porque isso foi aos dez anos.” A partir desse texto versejado, só se lhe volta a conhecer poemas em 1939, quatro no total, tendo o segundo, o soneto “Conselho”, do mês de Julho, o irmão do poeta como destinatário, fazendo-lhe uma recomendação quanto à paixão por que este passava: “Foge pra serra Arrábida chamada / cuj’ alecrim belo perfume emana / e vive co amor dela e uma cabana.” A serra aparece, assim, como espaço de abrigo, mais do que refúgio, feliz, respirada pelos sentidos, dimensão que podemos ver em muitos poemas vibrantes de uma flora que, exaustivamente, o poeta mostra — entre flores, arbustos, vegetação rasteira e árvores, algumas trazidas para título de poemas, muitas atapetando os versos, a diversidade é grande para que o leitor se deixe enredar. No poema seguinte, de Dezembro desse ano, “Arrábida”, o nome da serra aparece apenas no título, mas o texto desenvolve os atributos que lhe conferem o merecimento dos versos — “um canteir’ abençoado / que pasma toda a gente”; “linda serra” rodeada por um “mar muito calmo / verde, azul e prateado”, que “um salmo / sói cantar, quand’ encrespado”; “vista, / que encanta muit’ e deslumbra” —, concluindo com a superlativização da Arrábida perante uma congénere, glorificando-lhe a Natureza: “do panorama a beleza, / que é mista / — mar e serra — / deixa Sintra na penumbra. / Oh, bendita Natureza!”

A temática arrabidina circula nas veias da poesia de Sebastião da Gama desde cedo, ainda que nem sempre referencie a serra nos versos, indicação muitas vezes substituída por um elemento complementar, não literário, como a indicação do local em que o texto foi escrito. Certamente próxima desta visão está a admiração do poeta por Frei Agostinho da Cruz, o eremita que passou na Arrábida os derradeiros catorze anos da sua vida e que também sobre ela poetou. As referências do poeta do século XX ao seu “irmão” do século XVI surgem evidentes na epígrafe com que abre Serra-Mãe, construída com versos do franciscano — “Oh Serra das Estrelas tão vizinha: / Quem nunca de ti, Serra, se apartara...” Na mesma obra, a imagem do frade passa ainda por “Elegia para a minha campa” e por “Versos para eu dizer de joelhos”. E, nos títulos subsequentes, ele aparece em A Região dos Três Castelos (1949), Campo Aberto (“Palavras a Frei Agostinho”), Itinerário Paralelo (“Confidência”), Estevas (“Romance do Lima”), Diário (em registo de 11 de Outubro de 1949), O Segredo É Amar (“Páginas de Diário” e “Folhas de Jornal”), havendo ainda outros textos que o referem, presentes nos “Poemas Dispersos” (“Frei Agostinho da Cruz”, em dois sonetos) e nos “Poemas Inéditos” (“Carta a alguém”, “Aguarela” e “Saudades”). O ciclo de três séculos que separa a obra dos dois autores, tendo ambos como pano de fundo para a sua poesia a serra da Arrábida, bem comprova a presença da paisagem na tradição literária portuguesa, particularmente deste espaço, acrescendo que, para Sebastião da Gama, a serra foi motivo inspirador, criando, por isso, umas figuras míticas, as “Arrabídeas”, quais ninfas que povoariam os mares arrábidos (presentes nos poemas “Fonte”, de 2 de Dezembro de 1941, e “Luar da Arrábida”, de 23 de Abril de 1942).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1384, 2024-10-03, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


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