quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Um silêncio que fala

 



O título aproxima-se do poético — O tanto que grita este silêncio. O subtítulo tira as dúvidas e diz ao que vem o livro — “Porque se abstêm os portugueses?” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025). Em nota de apresentação, o livro de Nelson Nunes (n. 1986) surge como “retrato” que visa “suprir uma lacuna no debate na esfera pública, dando voz aos reais protagonistas do abstencionismo em Portugal”, sob duas epígrafes: uma, de Jefferson, segundo o qual “não temos um governo pela maioria, temos um governo pela maioria que participa”; outra, de Céline, mais próxima do argumento de muitos abstencionistas — “Nunca votei em toda a minha vida. Sempre soube que os idiotas estão em maioria e sairão vencedores.”

O livro, integrado na colecção “Retratos da Fundação”, segue a estrutura habitual dos títulos que se albergam nesta série: normalmente de carácter jornalístico, respeitando os princípios de uma mais ou menos extensa reportagem, em que há espaço para muitas vozes (abstencionistas, analistas e estudiosos), explorando as respostas que possam levar ao  “como” e ao “porquê” dos acontecimentos, e para reflexões pessoais do autor — aliás, a narrativa inicia-se com uma experiência vivida pelo autor, quando aluno do ensino secundário, numa aula de Introdução ao Direito, em que celebrou o seu compromisso: “Nunca hei de falhar uma eleição, porque a vida dá muitas voltas.”

Desde o início, o olhar sobre a abstenção recusa estigmatizar aqueles que têm optado por essa via: “Tenho uma outra proposta: ver os abstencionistas como adultos que tomam decisões em consciência. Que decidem activamente não votar. Com as suas razões.” Este propósito encaminha para algumas hipóteses, que o autor não omite: por um lado, “a política não está a comunicar de forma eficaz para chegar a todos, ou para satisfazer todos”; por outro, “os abstencionistas estão só à espera de ser ouvidos”, porque terão coisas a dizer.

Um dos entrevistados, no Porto, justifica a sua descrença nos políticos: “falta de compromisso político com o nosso país”, com “os próprios valores e ideias centrais da democracia viciados e facilmente corrompidos”. Idêntico sentimento perpassa por uma cidadã de Barcelos, octogenária, que deixou de votar, abstenção provocada por “uma zanga com os políticos, que, um atrás do outro, lhe vão faltando nas necessidades e lhe acertam em cheio no bolso e no bem-estar”. A falta de informação sobre os programas eleitorais e a indecisão quanto a opções foi a razão invocada por outra entrevistada da zona de Coimbra, influenciada pela ausência de estímulo para interesse por esta área quando era mais nova, mas a tentar pôr-se mais a par do que vai acontecendo. Não é por falta de informação que um emigrante na Irlanda não participa nos actos eleitorais — militante partidário na juventude, certo é que, “em dezoito anos de idade eleitoral, nunca votou”, muito influenciado pelo “temor de votar de forma pouco informada”. Também não falta informação a uma entrevistada que circula entre Braga e Porto, mas que optou pelo abstencionismo a partir do momento em que, nas eleições de 2015, se sentiu desrespeitada como eleitora por causa do “estratagema imprevisto” que aliou três partidos não vencedores de eleições para formarem governo. Mais radical parece ser a moradora em Odivelas, que, entre o votar em branco e o abster-se, larga a provocação: “Quase tenho vontade que haja um motim, uma revolta, em que todas as pessoas digam que não vão votar”, pois “não há nenhum partido em Portugal que nos dê segurança”. A navegar contra esta corrente, está o entrevistado de Rio de Mouro que deixou o abstencionismo para passar a ser participante no acto eleitoral, depois de um encontro com o amor e com a reflexão... que o fizeram considerar ser “perigoso deixar que uma pessoa qualquer governe os nossos destinos” e que, nas eleições, não se trata “de mim, trata-se de agirmos em conjunto”.

A decisão de votar pode estar relacionada com a proximidade de cada um com os partidos, com “a percepção de que o estilo de vida está em jogo”,... mas torna-se importante a convicção de Nelson Nunes — “os abstencionistas com quem tenho conversado revelam-se interessados por política, ainda que não se identifiquem com qualquer programa partidário”. Seja a dificuldade em ir votar, seja o desinteresse, seja o cansaço eleitoral ou qualquer outro condicionalismo que justifique a abstenção, a verdade é que contrariar esta prática exige esforço e descoberta de soluções — “simplificar o modo como se fala de política”, reorganizar os círculos eleitorais, aproximar os políticos relativamente às comunidades e trabalhar em prol das mesmas (sem que isso se verifique apenas em acto de campanha), agilizar os mecanismos que gerem confiança nas instituições e nos políticos e incutir responsabilidade aos cidadãos pela via da participação podem ser formas para tentar esbater a elevada abstenção. “O que falta é pôr os abstencionistas na comunicação social: libertá-los de um certo sentimento de vergonha, ouvi-los e perceber que caminho construtivo se pode desenvolver a partir daí” — tal é o esforço necessário e este livro de Nelson Nunes constitui um simpático contributo para essa reflexão, por certo indispensável.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1622, 2025-10-15, pg. 10.


quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ouvintes e falantes que somos...



Andamos em tempo de discursos promissores do paraíso na terra (sem que se diga como) e repletos de observações sobre os outros (que são os potenciais adversários), replicados e anotados em não menor estilo de campanha por quem se diz ser comentador... Vem à memória, para contrariar, um poema que corria nos manuais escolares da escola primária, “Vozes dos Animais”, jogo com os verbos que designam as vozes de quase quarenta animais e conclui com o humano: “A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais. / Nos versos lidos acima, / Se encontram, em pobre rima, / As vozes dos principais.” O autor não se tinha em grande conta como poeta, mas o texto vingou e permaneceu e, em 1883, Antero de Quental, na sua recolha Tesouro Poético da Infância, incluía este poema de Pedro Dinis (1839-1896), nome de quem pouco se sabe. Camilo Castelo Branco também o antologiara no seu Cancioneiro Alegre (1879), escolhendo um outro texto, mas mencionando ser “Vozes dos Animais” o seu mais conhecido poema, um conjunto “de quadrinhas recitadas pelos nossos pequenos” onde “destila dos seios o leite da instrução primária em apojadura copiosa”.

Ao destacar o homem por ser a criatura que fala, Pedro Dinis intuía que tal superioridade advinha do acto de pensar e do saber, fases primeiras para que a fala seja consistente, fundamentada. Apesar de se saber isso, a verdade é que o esquecimento nos atraiçoa muitas vezes. Assim, na lembrança sobre a oportunidade da fala, recorra-se a Julian Barnes, que nos transmite, quase proverbialmente, o que deveria ser levado como máxima de vida: “Sobre aquilo de que não sabemos falar devemos guardar silêncio.” (in O Sentido do Fim, 2011) Contudo, atrever a incluir este princípio na argumentação é difícil... pois a qualidade da argumentação na discussão e partilha de opiniões nem sempre é preocupação e os hábitos legitimam o falar “porque sim”, confundindo as noções de direito adquirido, liberdade de expressão e ignorância.

Uma outra farpa no discurso é a das condicionantes com que o querem formatar, mais com o objectivo de destruir ideias ou quem as profere. Na narrativa Desisto (2006), Philippe Claudel chamou a atenção para isso, ao dizer: “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.” Esta observação ganha acuidade hoje, tempo em que os cuidados em torno dos substantivos (prefiro esta designação àquela que a gramática instituiu, designando-os como “nome”) e dos adjectivos utilizados condicionam a expressão e facilmente servem para fazer desmoronar uma ideia ou para se ser acusado de coisas que nem tinham passado pela cabeça do falante.

Com mais ou menos habilidade, quem fala facilmente pode chegar à falácia (um raciocínio incoerente e não fundamentado, aparentemente verdadeiro) e o objectivo do discurso como forma de aproximação entre humanos facilmente se esvai, com proveito apenas para uma das partes. Deve-se a Eurípedes, na peça teatral As Bacantes, uma análise como esta: “Quando falta o bom senso ao homem audaz e simultaneamente poderoso e hábil na palavra, ele torna-se um cidadão perigoso.” Eurípedes, vivendo no século V antes de Cristo, sabia o que pode um discurso hábil fazer, mesmo que assente sobre erros ou mentiras, sobretudo se não houver o discernimento necessário à análise e reflexão sobre o mundo. O papel do ouvinte, muitas vezes passivo ou na pele do adepto fervoroso, presta-se à situação, sobretudo se se valorizar o espectáculo ou o sentir grupal (venha ele por razões sociais, profissionais, políticas, desportivas ou outras). A verdade é que a responsabilidade do ouvinte é grande, mas, muitas vezes, anulada, como se infere do que escreveu Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972): “Eu falo falo, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. (…) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.” Será pouco, convenhamos, para aquilo que deve ser um ouvinte...

Foi Ruben A. (falecido há meio século), com a sua causticidade e análise provocatória, que, no segundo volume do relato autobiográfico O Mundo à Minha Procura (1966), gravou este pensamento: “Sempre notei que na vida portuguesa não há qualquer relação entre os discursos que se proferem, parangonas que os jornais estampam, e a vida real do País. (...). Em discursos devemos ser o primeiro país do mundo, não só pela quantidade, mas pela diversidade de estilos e de assuntos que cada ser genial abarca diante de um público numeroso e atentamente interessado.”

Um olhar assim condicionado sobre a vida leva a que se siga o que Oscar Wilde desmascarou: “Aquilo de que se não fala nunca aconteceu. É apenas a expressão que dá realidade às coisas.” (in O Retrato de Dorian Gray, 1891) O problema parece residir, então, na selecção dos (prováveis) acontecimentos. E, consequência disso, com frequência, a discussão da actualidade passa pela discussão do que foi dito e como foi dito e não pelo tema do que foi feito ou do que falta ou do que deveria ser feito. E, já agora, do “como” deveria ser feito, uma tónica em que o discurso político é sempre hábil na arte da fuga e na arte (pouco) argumentativa...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1617, 2025-10-08, pg. 2.

     

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Catarina Pires e a descoberta da Filosofia

 


“A elaboração do presente trabalho teve como objectivo vincar alguns dos conceitos fundamentais dos principais filósofos abordados e analisados no decurso deste ano, os quais me permitiram ter uma visão mais ampla do conhecimento e da natureza dos valores humanos.” É assim que abre o texto introdutório à obra agora publicada, Glossário de Filosofia (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos), da autoria de Catarina Pires, jovem que concluiu o 10.º ano na Escola Secundária D. João II, em Setúbal, livro que reproduz um trabalho feito no âmbito da disciplina de Filosofia.

O leitor é então levado para os “conceitos fundamentais”, uma espécie de reunião das chaves-mestras do pensamento, obedecendo, como o título deixa antever, a um inventário de ideias ou de nomes, seguindo a ordem alfabética, um ensaio de organização de descobertas e de aprendizagens havidas.

São cerca de 170 as definições apresentadas, a que se soma uma trintena de entradas elementares sobre outros tantos pensadores com indicação do seu período de vida e dos principais títulos que nos legaram, tudo organizado em onze capítulos, divisão que resulta das próprias áreas estudadas na disciplina de Filosofia — “Concepção filosófica geral”, “Ética e Moralidade”, “Filosofia Clássica e grandes nomes da Filosofia”, “Lógica e Raciocínio”, a Filosofia como suporte de diversas áreas (arte, ciência, linguagem, mente e moral, política e social, religião) e ainda “Outros conceitos filosóficos”.

Este glossário é uma tentativa de inventário do que foram o estudo e a pesquisa de um ano, não surgindo como uma caixa fechada, mas como um espaço que pode alimentar pontos de partida. Útil, porque organiza e mapeia os conhecimentos; desafiante, porque não fecha certezas e convida ao pensamento e à procura de sentidos.

Compreendidas alfabeticamente entre “acção contrária ao dever” e “véu da ignorância” (ainda que pertencendo estes conceitos a capítulos diferentes), as definições oscilam entre aspectos mais abstractos e outros mais próximos; no entanto, sempre oportunos e com a necessidade de serem olhados para justificar a vida e as suas atitudes, sobretudo num tempo (como o de hoje) em que parece ganharem terreno o desrespeito pelo outro, o discurso falacioso, a colisão com a liberdade, a aceitação da intolerância ou o desprezo pela argumentação... Está o leitor perante definições que, no mínimo, remetem muito mais para a reflexão do que para as certezas, deixando-nos o dever de aprofundar e de agir em conformidade. Repare-se em alguns exemplos de definições, desafiando-se o leitor para entender a que se refere cada uma delas: “crença ou juízo subjectivo que não possui garantia de verdade objectiva”; “condição de agir conforme a própria vontade, dentro dos limites impostos pela razão e pela ética”; “capacidade de uma pessoa ou grupo social aceitar e respeitar as crenças, práticas e os comportamentos de outra pessoa ou grupo que sejam diferentes das normas ou valores do seu próprio grupo”; “raciocínio errado com aparência de verdadeiro, argumento incoerente, sem fundamento e inválido, utilizado de forma a provar eficazmente o que alega”; “liberdades fundamentais que garantem a autonomia e dignidade de cada pessoa, incluindo direitos como liberdade de pensamento, de expressão, de religião, o direito à vida e à propriedade”, cuja protecção “é essencial à construção de sociedades mais justas e democráticas”; “conjunto de todas as características e eventos-chave que compõem o essencial da existência humana, incluindo nascimento, crescimento, emoção, aspiração, conflito e mortalidade.” Percebe-se, seguindo a ordem destas definições, que se está a falar, respectivamente, de “opinião”, “liberdade”, “tolerância”, “falácia”, “direitos individuais” e “condição humana”. Este glossário, além de sistematizar alguns conhecimentos, apresenta a vantagem de nos poder levar a reflectir sobre o quotidiano, seja para alicerçarmos as opções individuais, seja para respeitar e construir a sociedade de que fazemos parte.

Ao longo do livro, há lugar para algumas referências bibliográficas, espaço em que teria sido vantajoso a Catarina Pires libertar-se um pouco da fidelização ao manual escolar adoptado, podendo ter sido objecto de pesquisa outros títulos no mesmo âmbito, pelas portas referenciais que a pluralidade de reflexões poderia suscitar. Para trabalho de final de ano lectivo numa disciplina do ensino secundário, este Glossário de Filosofia demonstra a utilidade do aprender a pensar na formação do indivíduo, o prazer de assumir o risco da exposição numa área que se está a descobrir e o altruísmo da partilha de verdades fundamentais que têm aplicação na vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1612, 2025-10-01, pg. 4.