sábado, 28 de junho de 2025

Onde fica o Paraíso?



“No princípio, Deus criou o Céu e a Terra.” Assim começa o primeiro dos livros bíblicos, o Génesis. Foi o aparecimento da luz, do firmamento, da terra, do mar. Sobre a terra, cresceu a relva e ervas com semente. Sobre o firmamento, foram criados dois luzeiros, um para a noite, outro para o dia. As águas foram povoadas por seres vivos e o firmamento por animais voadores. A terra ganhou animais domésticos, répteis e feras. E foram criados o homem e a mulher. “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom.” E o homem e a mulher viveram no Éden, jardim onde nada faltava... até à descoberta do mal, vinda através da serpente...

De um momento para o outro, o paraíso virava dificuldade, dor, sofrimento. Tudo perante o olhar humano, frágil. Seria, talvez, uma primeira aprendizagem, dura, mas para a vida — a da brevidade das coisas. Sobretudo quando são belas e dotadas de fascínio. Nuno Gomes Garcia, num romance sobre a participação portuguesa na Guerra de 14, Arame Farpado - As Peripécias de um Soldado Republicano (2011), escreveu, numa frase rápida, essa perda do espaço edénico — “O paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da humanidade, a terminar abruptamente.” Pior do que isto, só a crueza com que Agustín Fernández Paz registou, em Só Resta o Amor (Edições Nelson de Matos, 2008), a verdade iniludível segundo a qual “todos os paraísos têm uma data de validade.”

Imaginar o paraíso. Chegar a um local e achar que se está no paraíso. Porque sugere felicidade, porque é bonito, porque nos transcende, porque se celebra o nosso encontro com a beleza suprema, porque... não, talvez não o possamos imaginar. Numa crónica saída no Público (23.Maio.2015), Miguel Esteves Cardoso dizia porquê: “O paraíso nunca pode ser imaginado. Se é preciso imaginar é porque não se está lá. O paraíso pode ser sonhado mas nunca satisfaz porque, para ser um paraíso, é preciso consciência que se está lá, acordado, cheio de toda a sorte do mundo.”

Acontece então que os paraísos são sempre momentâneos e relacionam-se com o sentir. A felicidade pode ser permanente? Ela pode ser buscada, mas nunca deixará de se mostrar em curtos fragmentos, episódios, instantes. “Não há nada mais frágil e insubsistente do que a felicidade”, disse-o Domingos Monteiro num conto do livro Histórias das Horas Vagas (1966). Há quem lute contra isto, afirmando o seu estado de felicidade permanente com uma marca do género “sou feliz”. E duvida-se, porque, como noutras coisas, a felicidade não é uma via permanente, aí se percebendo a diferença entre o estatuto do verbo “ser” e a realidade do verbo “estar”... ainda que acreditemos que a vida é também o percurso em que se demanda a felicidade.

Voltemos ao Éden para lembrar Os Diários de Adão e Eva, que Mark Twayn (1835-1910) publicou em 1904 (o de Adão) e em 1906 (o de Eva), textos assentes sobre diários ficcionados, em que não faltam o humor nem um contributo para o entendimento do que têm sido as relações entre a mulher e o homem ao longo dos tempos. É Eva quem escreve, a dada altura, “depois da Queda”: “Quando evoco o passado, o Jardim é como um sonho. Era belo, incomparavelmente belo, e agora perdi-o e nunca mais o hei-de ver.” Mas, logo a seguir, diz sobre a sua conquista: “O Jardim está perdido, mas encontrei-o, por isso estou contente. Ele ama-me tão bem quanto pode; eu amo-o com todo o ímpeto da minha natureza passional.” Neste escrever para o diário (mesmo que ficcionado), Eva confessava essa ideia da procura e mesmo da construção da felicidade pela via do amor, um estado em que sonho, imaginação e alguma dose de realidade se misturam.

Pensando no Éden (ou no Paraíso), logo associamos o painel do tríptico “Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosch (1450-1516), que representa esse espaço, um cenário de equilíbrio e de coabitação pacífica e deslumbrante, completo e perfeito. Ainda que a descrição do Paraíso dependa do que dele se espera ou deseja, podemos subscrever o que algumas personagens nos passam, sobretudo retratos que não se preocupam tanto com a apresentação física, antes com o bem-estar, quase num momento de encontro do ser humano consigo. Sophia de Mello Breyner (1919-2004) permitiu que uma sua personagem nos antecipasse esse Éden numa narrativa como “A Viagem” (incluída em Contos Exemplares, obra de 1962): “Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.” No entanto, o conto não deu para que a personagem ali chegasse...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1557, 2025-06-25, pg. 10.


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Conceição Rendeiro: Sobre o rio das palavras



Impossível olhar para este título, Flúmen, e não associar de imediato o poema de Camões conhecido pelo seu primeiro verso, “Sôbolos rios que vão”, cenário e imagem escolhidos pelo poeta para falar do rio que de seus “olhos foi manado” porque, entre outras coisas, “ali, lembranças contentes / na alma se representaram”. E conseguimos, com um pouco de imaginação, acompanhar a narrativa de Jorge de Sena escrita em 1964, “Super flumina Babylonis”, que nos apresenta essa suposta noite em que Camões poderia ter escrito esse poema, numa luta pela memória e pelo reaver do passado, com todas as suas marcas de alegria e de tristeza, fazendo correr as palavras no flúmen, porque “bem são rios estas águas / com que banho este papel”. Flúmen, de Conceição Rendeiro (ed. Autora, 2025), conhecida médica pediatra em Setúbal, é, pois, um rio, o caudal dos sentimentos que a poesia permite expressar, o espelho que o poeta ajuda a construir e em que se revê.

Os poetas trazidos para epígrafe deste livro ajudam nesta interpretação, haja em vista o poema “Impressão digital”, de António Gedeão, afirmação do olhar individual sobre o mundo e o que o forma, ou um outro, “Inicial”, de Sophia de Mello Breyner, em que o mar, local maior de todas as águas, retribui o tempo inicial depois que agitou, entre ondas e torvelinhos, aquilo que se foi.

Surge este livro organizado em oito partes, indiciando um percurso, a avaliar logo pelo título da primeira, “Prenúncio”, que reúne dois poemas associados a circunstâncias históricas e pessoais, datados de 1969, ano de epopeia estudantil, poemas da busca da paz e da afirmação pela palavra, causa maior da geração, e outro, não datado, mas mais recente, de confessada adesão à leitura de Saramago, num revelar que tal simpatia advém da clareza e da coerência das palavras, apelativas que são para a construção alicerçada da solidariedade.

Nos grupos “Breves” e “Ritmos”, os poemas são dominados pela força dos instantes (resultantes de um “sentir de comoção / que por momentos / nos sacode o peito / e os olhos ilumina”), valorizando o prazer de imaginar um abraço ou de sentir o deslumbramento provocado por um trecho musical, indicando propósito de vida e chamando a atenção para o jogo entre a brevidade que a vida é e a exigência imposta a esta “condição de passagem”, qual seja a do cuidado a haver com o legado, algo entre os valores recebidos e transmitidos. Por vezes, ressalta a poesia que emerge do quotidiano, provenha ela de situações presenciadas (como o cruzar com o homem das castanhas ou o passar pela rua adornada de jacarandás) ou de momentos em que se é absorvido pelo silêncio e pela paragem, contrariando o “viver / em constante sobressalto” como opção.

Em Flúmen, não estamos perante o desabafo de quem se encerra na sua teia, pois também por aqui passa a expressão de preocupações colectivas, como vemos no grupo “Sobressaltos”, em que vive mais um conjunto de textos que toma para tema situações como o confinamento, a guerra, as migrações, os desastres, mazelas de que o poema se apropria para reconhecer a perturbação causada pelo atraso da “alegria / o sentimento / da vida / habitual”. Acrescente-se ainda a este núcleo da vivência do colectivo o poema que fecha o livro, “Cubo mágico”, pelo tom crítico, em que o brinquedo serve para retratar o “mundo desconcentrado” (a que Camões poderia chamar desconcertado...). Também o segmento “Arte de cuidar” agrupa poemas que oscilam entre o olhar crítico e a mensagem a passar, por vezes motivados por situações da contemporaneidade, como as questões de género e as diferenças, ou por referências resultantes do percurso autobiográfico da autora, como surge patente nos olhares sobre as crianças ou, particularmente, no que se intitula “Mensagem de pediatra”, uma quase cartilha orientada pelo terceto inicial que anuncia: “Crescer é aprender / ganhar autonomia / fazer-se gente”.

Os dois últimos conjuntos de poemas, “Vida” e “In memoriam”, são aqueles em que perpassa mais a expressão lírica do eu, ainda que por razões diferentes. No primeiro, essa expressão assenta na admiração pelo outro, na partilha (de que é exemplo o texto “O meu 25 de Abril para ti”, forma emotiva de permitir a comunhão das vivências e a preservação da memória), na glorificação do amor e de tempos de êxtase, de emoção, visando a celebração dos mesmos. Já nos poemas reunidos sob o título “In memoriam”, assiste o leitor à valorização da lembrança que recompõe os últimos tempos da presença do outro, marcados pela dor da perda, anunciada e concretizada — o poema “Na hora do adeus”, à semelhança do que acontecia nas cantigas de amigo medievais, usa a estratégia do desabafo com a Natureza, “brisas trazei / afagos do meu amor”, apelo que acentua a dor, pois nas cantigas de amigo a jovem apaixonada queria saber notícias do amado temporariamente distante e, neste caso, a distância é definitiva.

Flúmen surge, pois, como o caudal que permite que as “lembranças contentes” na alma se representem, que lembra que “o tempo vale / pela qualidade testemunho / intensidade das nossas vivências / empenho e dedicação aos outros / exultação de alegria e prazer / dor pessoal e do próximo / cumplicidade de momentos únicos”. Os poemas são, por isso, uma forma de povoar a memória e também de valorizar o tempo, de usar a palavra para assinalar a intensidade da vida. 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1548, 2025-06-11, pg. 10.

 

domingo, 8 de junho de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (2)

 


As observações de Sebastião da Gama sobre o livro Dádiva, de Luís Amaro, saído em 1949, tinham em consideração a amizade que, desde há quatro anos, os vinha aproximando: ambos se conheceram em 1945 na Portugália Editora, num terceiro andar da Avenida da Liberdade, e chegaram a ter quarto alugado na mesma residência, na capital, ainda que em tempos diferentes — na Rua das Taipas, em casa que pertenceu à fadista Adelina Fernandes, onde Sebastião teve quarto enquanto estudou em Lisboa, que, depois, passou para Luís Amaro. Pelo catálogo Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros passam várias menções à relação entre o homenageado e o poeta da Arrábida: a propósito da relação editorial entre os dois (a partir do momento em que se conheceram, ano em que foi publicado Serra-Mãe, com a chancela da Portugália, mas com os custos da edição suportados pelos pais de Sebastião da Gama), do incentivo do poeta-professor junto do amigo para a publicação de Dádiva e de um encontro de trabalho de Amaro com Joana Luísa da Gama (1923-2014), em Massamá (em 1999), a propósito da obra inédita do poeta, que estava em preparação (momento de que é reproduzida fotografia).

Se 1949 foi o ano de publicação da obra poética de Luís Amaro que os amigos tanto desejavam ver, também foi o ano de reabilitação na saúde deste aljustrelense, que passou por grave crise relacionada com tuberculose pulmonar.

O catálogo, fortemente ilustrado, vai dando os traços biográficos essenciais do homenageado, assinalando a década de 1950 como a do aparecimento da revista Árvore, subintitulada “Folhas de Poesia”, resultado de iniciativa de Luís Amaro, António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e José Terra, um projecto que teve apenas quatro números (1951 a 1953) e fim ditado pela censura do Estado Novo. A finalizar essa década (1959), é mencionado o casamento de Amaro com Amélia Magalhães, colega de trabalho, relação que durou até ao falecimento dela, em 2013.

O trabalho de Luís Amaro como tradutor e revisor manteve-se na Portugália até Março de 1970, altura em que passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian (até 1989), na revista Colóquio - Letras, projecto que, sob as direcções de Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Morais Varela, sempre teve o cunho esmerado do bibliógrafo, tal como foi reconhecido, no número de Março de 1989, sob a pena de Morais Varela, ao assinalar-lhe a sua “excepcional capacidade de trabalho” e retratando-o como “tão minucioso e apaixonado nas tarefas mais humildes como na investigação mais especializada”.

O tempo da aposentação ocupou-o Luís Amaro nas tarefas de que sempre gostou — a pesquisa contínua, a organização de bibliografias, a disponibilidade para ajudar investigadores com eles partilhando o seu saber (tendo continuado como consultor editorial da Colóquio - Letras), a correspondência intensa com amigos. Tão grande abertura e atenção aos outros levou a que, em vários momentos, tenha havido reconhecimento público do valor e do serviço prestado por Luís Amaro à cultura portuguesa — se houve espaço para algumas acções de cariz social e cultural, houve também oportunidade para esse reconhecimento ser feito através daquilo que sempre orientou o trabalho deste investigador, o livro: em 2005, o poeta aljustrelense via ser publicada a obra Para Lá da Névoa - Homenagem a Luís Amaro (Caixotim Edições), conjunto de dezassete depoimentos, entre os quais se contam os de Eugénio Lisboa, Fernando J. B. Martinho e Fernando Venâncio, para só mencionar nomes recentemente desaparecidos, e, três anos depois, a Câmara Municipal de Aljustrel atribuía o nome de Luís Amaro à Biblioteca Municipal, decisão honrosa para quem dedicou a vida ao livro e aos autores. Um livro constituiria ainda um outro momento de homenagem, mas póstuma, quando, em 2020, saiu Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), duas dúzias de testemunhos, organizado por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel.

Por este catálogo passam ainda citações de homenagem de catorze autores, todas constituindo prova do importantíssimo contributo que este bibliógrafo aljustrelense deu à cultura portuguesa, de que destaco duas: se Fernando Venâncio reconheceu que Amaro “fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros” (ele, um homem que apenas passou por uma Universidade, a Portugália, como mencionou numa carta que me endereçou), Sofia Santos considerou “uma tarefa tantálica elencar todas as contribuições que Luís Amaro dedicou à literatura portuguesa e aos seus autores”.

Indiscutivelmente, a sua “dádiva”, resumindo a sua obra, encontra eco em dois títulos: no que foi dado à exposição e a este catálogo, organizados pela Associação Do Fundo à Superfície, e no que foi atribuído à tertúlia realizada em Aljustrel em 13 de Junho de 2024: “Luís Amaro: um homem que era a memória viva da literatura portuguesa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1544, 2025-06-04, pg. 10.