domingo, 28 de novembro de 2010

"Sobreviver ao cancro", de Florindo Cardoso

Quaisquer que sejam os escritos autobiográficos, eles resultam sempre da singularidade de uma experiência pessoal, seja esta singularidade reconhecida pelos outros, seja reconhecida pelo próprio que a viveu. Em qualquer dos casos, o protagonista dessa singularidade está predisposto a reconhecê-la e a considerá-la de tal forma importante que ela pode virar testemunho escrito. Abundam exemplos desses na literatura, resultados de vivências únicas na política, nos campos de batalha, em missões de solidariedade, na prisão, na doença, na profissão.
O que aqui nos traz Florindo Cardoso, no seu livro Sobreviver ao cancro (Setúbal: ed. Autor, 2010), é uma dessas experiências, é a singularidade do estado de doença por que passou, numa experiência de solidão e de confronto com as potencialidades da vida.
Logo na “Nota de Autor” é feita uma curta apresentação da narrativa: “É uma história de vitórias e derrotas, de alegrias e lágrimas, de sofrimento e dor; de uma certa felicidade por ter sobrevivido e poder contar aos outros a minha batalha.”
Esta necessidade de dar testemunho do vivido, apesar dos seus custos (psicológicos, sobretudo) implica também que se fale de esperança, que pode ser algo tão fácil como não alimentar o pessimismo, como viver o momento oportuno para uma palavra amiga dirigida a quem dela precise, vivência que Florindo Cardoso reconhece nem sempre ter tido, como confessa ao encerrar a nota: “Os portugueses têm um defeito terrível que está bem presente em qualquer situação: nunca simplificam, antes complicam, transmitindo uma energia negativa.” Puxão de orelhas, é certo, a hábitos sociais que, na verdade, nada ajudam em momentos difíceis!
A manhã de 6 de Fevereiro de 2009 foi o início deste testemunho, numa história dramática em que o sangue corre pelas pernas, incontrolável; em que a solidão torna o momento mais trágico; em que a calma do outro lado da linha telefónica mais serve para conduzir ao desespero de uma evidência: a luta desmesurada entre o homem e o mal, a obsessão pela vida, o medo da morte.
A narrativa inicia-se com a violência da revelação – “Tem um cancro maligno e está anémico”, frase que penetra “como uma autêntica facada no coração” e que resulta de um confronto brutal com a descoberta, mais sublinhado pela insensibilidade de quem profere a sentença.
A partir daqui, a experiência narrada vive com todas as pequenas coisas a saberem a passos importantes: é a voz de uma voluntária que acalma e incita à persistência na luta, “uma estrela num céu tão cinzento”, pensa o doente; é o olhar pela sala de espera de um hospital, onde estão “dezenas de pessoas a queixar-se de dores e outras maleitas”, contando “histórias incríveis”; é a estranheza perante o tom algo desportivo que vai sendo posto por alguns técnicos na realização das respectivas tarefas… Enquanto anda de um lado para o outro – aqui incluindo o trajecto entre dois hospitais, entre Lisboa e Setúbal –, o doente confronta-se com o facto de que tudo corre “como se ele não existisse”, comentário forte e incisivo quanto ao que deve ser a atitude de quem trabalha na saúde. Apesar do sofrimento, este doente vai tendo energias para algum sentido de humor e de crítica.
A narrativa que Florindo Cardoso nos traz, sendo uma memória de um seu tempo e do seu sentir, não esconde as vicissitudes do protagonista, os seus momentos de fragilidade, como acontece quando está já na cama do hospital de Setúbal: “As pestanas fecharam-se e o medo venceu a dor e as lágrimas.”
Na semana que passou até à intervenção cirúrgica, o tempo foi de revolta, em “dias de muita infelicidade e lágrimas de sofrimento”, ao mesmo tempo que o corpo técnico estava agora a zelar também pelo equilíbrio emocional do paciente. E o decurso da história vai mostrando como um capítulo que se intitula “Revolta” acaba por dizer respeito ao tempo da esperança e do desejo de sentir o mundo que apela lá de fora, apesar da sombra das ideias suicidas.
O regresso a casa, pouco mais de duas semanas depois da manhã da tragédia, é uma pequena saudação à vida: “Que sensação óptima! Parecia um dia de Verão. (…) Sinto-me vivo! Quando entrei no meu apartamento, senti uma alegria enorme. Deitei-me no sofá e saboreei cada momento até adormecer.”
O capítulo que está sob o signo do “Regresso” vai dando conta do que é o encontro com a vida normal, quotidiana, mais numa perspectiva crítica, não faltando a referência aos hábitos sociais – “Parece que virou moda falar desta doença. Se por um lado é bom desmistificar para ajudar os doentes que se deparam com estes casos, por outro, acaba por afundar ainda mais e adensa-se o medo da morte.”
A verdade é que nada é tão forte como os pequenos sinais de libertação. É com graça e alguma curiosidade que decorre o passo de retirada da algália – “Finalmente, a 30 de Março, foi retirada a algália. O alívio foi tão grande. Pedi à enfermeira para mostrar o tamanho do tubo e pasmei com a sua grandeza. Os primeiros passos livres, sem saco para a urina, foram uma felicidade. Quando vi a enfermeira lançar os restos da algália para o lixo, apetecia-me gritar bem alto: estou livre!”
O humor posto em alguns comentários vai aliviando o peso da narrativa, tal como acontece no momento em que é relatado o retomar dos hábitos quotidianos: “Senti-me uma espécie de ‘morto-vivo’, com a sensação de que alguém esperava que já não viesse. Regressei e não houve funeral! Graças a Deus. Havia caras de espanto de pessoas que encontrava na rua.”
No entanto, uma segunda ameaça se preparava e, em 26 de Julho, acontecia nova entrada no hospital. Se a primeira estadia no quarto hospitalar servira para acalentar a revolta, esta segunda vai permitir o sabor amargo da solidão e do sofrimento, com um narrador a mostrar-se sem receio, a revelar-se na sua intimidade, num tom algo confessional: “Essa noite foi mal dormida e com muitas lágrimas. Pensei que tinha secado com tanto choro há três meses. Só que, na solidão do quarto, voltei a ver o filme todo da minha vida e chorei, chorei e chorei até adormecer em soluços.” Porém, depois da operação, é novamente o sentido de humor a intervir, numa ironia do narrador para consigo mesmo – ao ver-se com um dreno em cada lado das pernas, comenta: “Parecia uma árvore de Natal em fim de carreira”; ao ver a quantidade de pontos, considera: “Um cenário de filme de terror, sentia-me o filho do Frankenstein.”
As duas fases seguintes – da quimioterapia e da radioterapia – foram tempos de sofrimento silencioso, quer pelas consequências dos tratamentos, quer pelas forças necessárias para os aguentar. É a mesma escrita de dor, com os pormenores dos medos e dos isolamentos. É o encarar os outros doentes em situação de igualdade e de cumplicidade. É o olhar sobre outros casos com respeito e sofrendo a angústia do que estariam a sentir esses outros protagonistas.
Os quatro capítulos finais são um grito de esperança: “continuo a lutar pela vida com grande garra”. Isto, apesar de se manter uma certeza: a de que “o medo não vai embora, está sempre presente”.
Várias recomendações guarda Florindo Cardoso para este final: a de que “cada dia que passa [é] um sucesso e uma homenagem à vida” vale por muitos sonhos. Mas há também as recomendações mais simples da alimentação e de hábitos quotidianos. E, sobretudo, a última, que encerra o livro: “Encontrar a harmonia espiritual, dar maior importância às coisas simples da vida e descomplexar tantos problemas que surgem no dia-a-dia. Viver a vida.”
Iniciei esta leitura com a singularidade da história. E mantenho-a. Mas este relato não é apenas uma memória; é também um ensinamento e a prova de que a solidão de cada um se deve amparar, tal como Florindo Cardoso recorda: “Só mesmo o meu optimismo, o incrível apoio da equipa médica e da família permitiram vencer o derrotismo e os maus pensamentos.”
Finalmente, uma palavra sobre os apoios que Florindo Cardoso reconhece terem tido importante papel no seu percurso – a apoio do corpo médico e de enfermagem, é certo, que enaltece e a que agradece pelo seu papel de esclarecimento e de acompanhamento; o apoio espiritual, advindo de uma ligação forte à crença e ao sagrado, objectivado na dimensão religiosa de Nossa Senhora de Fátima, várias vezes referida como intermediária e recurso; o apoio familiar, sobre o qual tão pouco se sabe porque os testemunhos são normalmente dos doentes mas escassas vezes de quem os acompanha, assim nos estando vedado um outro tipo de sofrimento e de angústia. No entanto, este livro insere ainda o testemunho da mãe, numa carta dirigida ao filho, que, simbolicamente, abre o livro, memória de uma dor velada, minada por esse paradoxo que é o de “mostrar força”, por um lado, e refugiar-se nas lágrimas da incerteza, por outro. O livro surge, assim, completo, mostrando-nos o sofrimento dos dois lados, ainda que sendo um deles mais silencioso.
Se o discurso de Florindo Cardoso pode decorrer de uma conversa onde nada aparece como definitivo – mesmo o título é comedido, na medida em que não se fala de vitória –, onde algumas reservas vão aparecendo num percurso que é novo, iniciado e que vai sendo aprendido, o discurso da mãe é o da expectativa, manifestando o apoio mas claramente esperando pela reacção à doença… porque se pode ajudar a superar, mas apenas ao paciente é dada a possibilidade de efectivamente ultrapassar a crise.
Um e outro são testemunhos fortes, é verdade. Valem por isso e são necessários. Este gesto de partilha com os leitores é disso prova evidente!
[Na apresentação do livro, em 27 de Novembro de 2010, no Governo Civil de Setúbal.]

Coincidências de livros

Forasteiro que, na tarde de ontem, chegasse a Setúbal e se apercebesse da programação cultural na cidade ficaria espantado: numa tarde, entre as 15h30 e as 17h30, nada menos do que a apresentação de quatro livros, todos de diferentes áreas. E não estávamos em nenhuma capital do livro, em nenhum evento desses que giram em torno das festas do livro. Não, era em Setúbal, onde uma situação destas não é vulgar. Por ordem do relógio, ocorreram as seguintes apresentações: Promessa, de Ilídio Gomes (poesia, na Biblioteca Municipal de Setúbal); Edição e editores - O mundo do livro em Portugal, 1940-1970, de Nuno Medeiros (ensaio, na livraria Culsete); Museu de Setúbal e o seu fundador João Botelho Moniz Borba, de Francisco Moniz Borba (memória e história local, no Convento de Jesus); Sobreviver ao cancro, de Florindo Cardoso (testemunho, no Governo Civil de Setúbal).
Coincidência, por certo. E acaso, também. E mais a coincidência de um dos livros ser justamente sobre a vida editorial. E mais a coincidência de outro, sobre o Museu de Setúbal, ter sido apresentado no que do Museu vai restando, assim tornando vivo o que foi um Museu (que agora só por eufemismo se pode dizer que existe).

sábado, 20 de novembro de 2010

Sebastião da Gama homenageado em antologia

Os alunos da Oficina de Poesia da Universidade Sénior de Setúbal publicaram uma antologia intitulada Homenagem a Sebastião da Gama, reunindo 29 textos produzidos nas respectivas sessões.
A antologia foi ontem apresentada, no final da sessão que, no Museu Sebastião da Gama, em Azeitão, decorreu, destinada a alunos da Universidade Sénior de Setúbal e a alunos do Clube Universitário Tempo Livre da Amadora.

TAS levou Gil Vicente à escola


Auto da Barca do Inferno, pelo TAS - Diabo e Companheiros (cena inicial)

Auto da Barca do Inferno, pelo TAS - Anjo e Parvo(s) (cena final)

Na tarde de quinta-feira, o Teatro Animação de Setúbal (TAS) foi à minha escola representar o vicentino Auto da Barca do Inferno. Texto adaptado por Pompeu José e encenado por Pompeu José e Carlos Curto, que alterou a ordem de entrada das personagens em cena e que eliminou mesmo os cavaleiros (que Gil Vicente pôs no final), teve uma representação que surpreendeu também pelos escassos recursos humanos – três actores (a Isabel Ganilho, o Miguel Assis e a Sónia Martins) foram suficientes para dar corpo a toda a trama da peça. Deixo alguns excertos de comentários dos meus alunos.
A.V.: “Achei que a peça se adequava perfeitamente a pessoas da nossa idade, pois a forma como as personagens se exprimiam e falaram conquistou a atenção de todos. Por outro lado, achei interessante o facto de terem alterado a última parte da história, pois não apareceram os cavaleiros e surgiram dois parvos. (…) A actriz que mais gostei de ver em cena foi a Sónia Martins, que representava o Diabo e o Anjo, pois ela mudava de uma personagem para outra tão bem, mudando a voz e a expressão.
I. D.: “Achei interessante a forma como a peça foi representada. Gostei do facto de serem apenas três pessoas a representar a peça. Como um actor referiu, a esfera representava, de certa forma, o globo, o mundo, o que, na minha opinião, foi um aspecto de que gostei muito, porque, em vez da haver as duas típicas barcas, havia uma esfera única, que representava a barca do Inferno ou a do Céu, consoante a cena e a iluminação.
S. S.: “Gostei bastante da representação. O cenário e as roupas estavam diferentes daquilo que tinha em mente quando li a peça, mas surpreenderam-me pela positiva. A peça mostrou-se mais contemporânea do que parecia no papel e eu gostei disso.
A. B. S.: “Gostei do efeito das luzes, porque a mudança de cor fazia mesmo parecer que estávamos no Inferno ou no Céu.
I. P.: “Surpreendeu-me o facto de a actriz que fazia de Anjo e de Diabo mudar tão rapidamente a voz. (…) Não tive nenhum actor preferido, pois acho que todos fizeram um excelente trabalho. Do ponto de vista cénico, estava muito bom, pois gostei da decoração e do efeito das luzes, que mudavam de cor, consoante fosse a barca do Inferno ou do Paraíso.
T. C.: “Gostei muito de ver esta representação. Acho que as alterações introduzidas na peça foram bem conseguidas, pois, como já a conhecia, fiquei sempre na expectativa para ver como era feira a representação dessas mesmas personagens e cenas. Na minha opinião, os actores estiveram muito bem. A expressividade nas suas falas e a criação das personagens cativaram o público. A personagem que mais apreciei foi o Diabo, pois acho que as falas eram muito cómicas e a representação desta personagem estava espectacular, pois os seus actos diziam mais do que as palavras.

Vitória Futebol Clube - 100 anos de vida

Correra animado o Verão setubalense de 1910, ainda em tempo de monarquia, graças a D. Bernardo Mesquitela, comandante da canhoneira “Zaire”, que tinha organizado festas desportivas na zona da Quinta da Saboaria.
Apesar de haver alguns clubes já dedicados ao desporto – como o Grupo Académico, o Setubalense Sporting Clube ou o Bonfim Foot-Ball Club –, a verdade é que, depois desse Verão, um jornal dizia que fazia muita falta em Setúbal um clube que se dedicasse à especialidade do futebol.
Fosse ou não por acaso, o mês de Novembro, quando os tempos já eram republicanos, viu nomes como os de Joaquim Venâncio, Manuel Gregório e Henrique Santos a afastarem-se do BFC para erguerem um novo grupo, a que se juntaram Guilherme da Silveira, Gabriel Rouillé, Manuel Reimão e José Preto Chagas, que, em definitivo, em 20 de Novembro, constituíram o Sport Vitória.
A primeira assembleia geral da organização ocorreu em 5 de Maio de 1911, sessão em que Joaquim Correia da Costa propôs a alteração do nome do clube, que, a partir daí, se passaria a chamar Victoria Foot-Ball Club. A partir desta assembleia-geral, foi criada a primeira direcção do clube, constituída por Manuel dos Santos Barreira (presidente), Mário Ledo (vice-presidente), Manuel Reimão (1º secretário), António Ledo (2º secretário), Joaquim Venâncio (tesoureiro) e João Dinis (capitão geral).
Passados 100 anos sobre esse Novembro de separação e de origem de um novo grupo... parabéns, VFC!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Alexandre Soares dos Santos: um retrato sem eufemismos

Alexandre Soares dos Santos, presidente do grupo Jerónimo Martins – que, recentemente, lançou a Fundação Francisco Manuel dos Santos –, em entrevista que o jornal OJE publicou na edição de ontem (edição nº 1000), fez uma análise do momento que se vive em Portugal, primando pela ausência de “meias palavras ou de eufemismos”, como é dito na introdução à entrevista, conduzida por Luís Pimenta. Alguns excertos:
1. Como se decide - “Há algumas semanas, tive ocasião de dizer a um membro do governo que eles fazem as coisas e utilizam o dinheiro como querem e lhes apetece e depois mandam-nos a factura – a nós, portugueses, que não fomos chamados rigorosamente para nada. O que se tem vindo a passar, de há uns anos a esta parte, é que o Governo e o Parlamento são uma e a mesma coisa, decidem determinados caminhos sem terem em consideração as necessidades do país, antes observando as suas próprias, que servem objectivos partidários. Alimentam-se e decidem-se, por exemplo, projectos megalómanos que têm como único resultado o crescimento do endividamento nacional.”
2. Rumo - “A verdade é que o país deixou de ter um rumo, ninguém sabe para onde vamos e resulta claro que não há hipótese de governar e de progredir sem se saber onde estamos e para onde queremos ir.”
3. TGV - “Pergunto, por exemplo, como é possível continuarmos a discutir projectos como o TGV, quando sabemos, de antemão, que não iremos conseguir financiamento? Porque se continua a mentir à sociedade portuguesa e a alimentar projectos para os quais não há dinheiro?”
4. Trabalho e emprego - “Na verdade, todos têm direito ao trabalho, mas ninguém tem direito a ficar num emprego a vida toda. O trabalho é um direito, mas o emprego conquista-se. Em Portugal confunde-se muito estes conceitos, mas, enquanto assim for, vamos continuar a ver o país a cair. Há uma característica muito nossa, que dificulta as coisas: o português resigna-se, diz que é a 'vontade de Deus'. Mas Deus não tem nada que ver com isto.”
5. Orçamento de Estado - “Este Orçamento não foi preparado com o cuidado e com o tempo necessários, fazendo, aliás, acreditar na ideia de que alguém impôs este OE a Portugal.”
6. Cortes nos salários - “Considero terrível o que se passa com os salários da função pública: foram aumentados de acordo com um ciclo político para, agora, serem cortados. Ora, isto não se faz. Não se pode fazer em nome do que quer que seja. Já defendi anteriormente, mas repito-o: era preferível propor mais horas de trabalho, reduzindo o custo por hora, do que reduzir salários. Teria sido mais justo assim. É preciso olhar para as pessoas e ter em conta que elas assumiram os seus encargos e que têm as suas despesas, que são legítimas e necessárias. (…) Trata-se de uma situação de desânimo generalizado que pode dar origem a fenómenos nada positivos para o desenvolvimento do país.”
7. Entendimentos e rumos - “É absolutamente necessário que as principais forças políticas, sociais e económicas se sentem à volta de uma mesma mesa e discutam o rumo para Portugal, em encontros que poderiam, e deveriam, acontecer sob o patrocínio do Presidente da República. (…) É o que precisamos neste momento: discutir o tempo que for necessário, até encontrar um acordo e, depois, garantir que esse rumo é, de facto, aplicado na gestão do país. E esta será uma missão de todos, da Igreja aos sindicatos, do patronato aos partidos políticos.”
8. Fundação Francisco Manuel dos Santos - “A ideia [da criação da Fundação Francisco Manuel dos Santos] nasceu no seio da família, quando nos interrogámos sobre o que poderíamos fazer por este país, que tanto nos tem dado. (…) Numa das discussões em torno do tema, lançámos o desafio de ‘acordar’ a sociedade civil portuguesa, no fundo, compensando a pouca intervenção que se verifica actualmente, seja do meio académico, seja do mundo empresarial. Queremos, com a Fundação, incentivar o sentimento de que a sociedade civil é o elemento determinante da qualidade do país.”

terça-feira, 16 de novembro de 2010

As árias (com) que Luísa Todi (en)cantou

O grupo “Os Músicos do Tejo”, dedicado à música antiga, teve a sua primeira apresentação há cinco anos, em Setúbal. Passado este tempo, uma figura da cultura setubalense deu o mote ao mais recente trabalho discográfico do grupo: falo do cd As árias de Luísa Todi, que reúne algumas das peças que a cantora lírica sadina interpretou quando corria o último quartel do século XVIII.
O texto introdutório do booklet que acompanha esta obra é da autoria de Mário Moreau, estudioso da biografia e da obra de Luísa Todi (1753-1833), que considera ter este trabalho enriquecido “de modo significativo o património musical português”, uma vez que ele dá a conhecer, “pela primeira vez, nove árias e duas aberturas de óperas do repertório da nossa grande cantora”.
A justificação para a importância de Luísa Todi dá-a Moreau nos seguintes termos, em que evidencia a força da dupla que cruza o canto e a cena, marcas fortes da artista lírica de Setúbal: “Outros cantores e cantoras houve, no decurso desse século, que possuíram dotes vocais de excepção, alguns, porventura, até nalguns aspectos superiores aos de Luísa Todi. Mas o artista lírico, no sentido mais lato da palavra, não se deve limitar a cantar, por muito bem que o faça. Ao pisar o palco para interpretar uma personagem, ele terá também de ter dotes cénicos condizentes com a sua interpretação musical. Era essa componente histriónica que a Todi possuía no mais elevado grau, sobejamente reconhecida e enaltecida pela crítica de toda a Europa e numa época em que o aspecto cénico da interpretação operática era considerado de importância secundária. (…) Mas não se infira destas palavras que ela era uma intérprete cénica máxima mas que vocalmente era apenas ‘suficiente’. Pelo contrário, a sua técnica vocal era igualmente superlativa e só teria, talvez, equivalente numa Mara, numa Bastardella, numa Saint-Huberti e em muito poucas mais. Foi, pois, este binómio canto-cena que colocou a Todi no lugar mais elevado da arte lírica da sua época e que nenhum outro artista conseguiu então igualar.”
O projecto apresentado pel’ “Os Músicos do Tejo”, patrocinado pela Amarsul, tem a direcção musical de Marcos Magalhães e a soprano Joana Seara empresta a voz à interpretação de Luísa Todi. As dezasseis faixas do cd contêm interpretações de Florian Gassman (1729-1774), Bernardino Ottani (1736-1827), Niccolò Pissinni (1728-1800), Giovanni Paisiello (1740-1816), Antonio Sachinni (1731-1786) e David Perez (1711-1779).

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Entre o Forum Luísa Todi e o Cinema Charlot, em Setúbal

Na edição de O Setubalense de hoje, António Elias, na sua rubrica "Conversas de Café", clama pela normalidade, num desabafo que muitos setubalenses perfilharão: é a urgência de Setúbal ter (de novo) o Forum Luísa Todi em funcionamento, condição mínima, determinante e essencial para algum ritmo na vida cultural da cidade. Chega a ser deprimente ver as instituições culturais da cidade arrastarem-se nos seus projectos porque não há uma sala de espectáculos em Setúbal! E, já agora, quanto ao cinema Charlot, será de pensar na atribuição àquele espaço do nome de Mário Ventura, como tão bem sugeriu Luís Souta no Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, que teve lugar no final da semana passada.
Aqui fica o excerto do jornal a que faço referência:

sábado, 6 de novembro de 2010

Luísa Todi - Ouvir as suas árias

O leitor nunca ouviu Luísa Todi cantar, mas sabe que ela foi importante cantora lírica do seu tempo (1753-1833), sendo apreciada nos salões europeus, de Madrid até S. Petersburgo, ainda que ostracizada em Portugal. A memória tem tratado de manter o nome de Luísa Todi, seja em Setúbal (com registo em monumento, na toponímia, num espaço de espectáculos, num prémio de canto), seja em bibliografia adequada (podendo referir-se, além do clássico de Joaquim de Vasconcelos, as biografias elaboradas por Mário Moreau – Lisboa: Hugin, 2002 – ou por Victor Luís Eleutério – Lisboa: Montepio Geral, 2003).
Ouvir Luísa Todi vai ser possível, ainda que por interpostas vozes – em 13 de Novembro, no Teatro Municipal de Almada, vai ser apresentado o cd As árias de Luísa Todi, numa realização do grupo “Músicos do Tejo”, com a soprano Joana Seara e a direcção musical de Marcos Magalhães. Para já, alguns números correm no You Tube.


Estudos Locais de Setúbal (2) – O azar de Vasco Mouzinho de Quevedo

“Ou é azar meu ou é de Vasco Mouzinho de Quevedo; mas digo que é de Vasco Mouzinho de Quevedo e da cultura de Setúbal”. Assim começou Manuel dos Santos Rodrigues a sua conferência de ontem no II Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, intitulada “Os mistérios de Vasco Mouzinho de Quevedo”.
Queria este investigador, com tese defendida sobre este autor setubalense dos séculos XVI-XVII, referir-se ao tempo que passa desde que a Câmara Municipal de Setúbal, em Julho de 2002, assumiu editar a sua obra O "Afonso Africano" de Vasco Mouzinho de Quevedo, tendo para o efeito promovido uma subscrição pública, publicação que ainda não viu a luz do dia, sem que ao autor tenha sido dada justificação para o impasse.
Este incidente prolonga, afinal, o desconhecimento pelo público dessa personagem da cultura portuguesa que foi Vasco Mouzinho de Quevedo, figura que teve a sua vida envolta em mistérios e que, apesar de ser o autor da segunda mais importante epopeia portuguesa, permanece na memória do quase silêncio. Entre outros enigmas que recaem sobre Quevedo, há o do seu nome, uma vez que assinou também como Vasco Mouzinho de Castelo Branco, ou uma vez que o apelido “Quevedo” surge também com as variantes “Quebedo” e “Cabedo”; há ainda o mistério do seu período de vida, garantindo Manuel Rodrigues que ele nasceu antes de 1564 e morreu depois de 1629, mas antes de 1631; e há ainda o não menor segredo que reside na diferença entre o que Quevedo escreveu e deixou nos manuscritos e o que foi publicado…
São mistérios que Manuel dos Santos Rodrigues tem perseguido e tentado desvendar, para alguns deles tendo encontrado respostas. Por resolver continua, no entanto, o enigma com que abriu a conferência…

Estudos Locais de Setúbal (1) – Luís Souta e a escola dos escritores ligados a Setúbal

No II Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, que decorreu ontem e hoje, assisti à conferência de Luís Souta (acontecida ontem), de que gostei, pelo cruzamento com identidades e com a cultural local, sem esquecer o mais vasto âmbito da cultura portuguesa.
Intitulada “Na escola da dor e do sofrimento, segundo cinco escritores do distrito”, Souta acentuou tratar-se de um conjunto de retratos feitos a partir de obras literárias, passando por obras de Mário Ventura, Maria Rosa Colaço, Romeu Correia, Manuel da Fonseca e Sebastião da Gama (tendo ainda havido remissões para Carlos Ceia e para Matilde Rosa Araújo), pretendendo mostrar “o olhar da literatura sobre o universo escolar”.
A originalidade da leitura de Luís Souta foi interessante, bem para lá da discussão do autobiografismo na literatura, mostrando que a ficção nasce de realidades, aí incluindo realidades vividas. A evocação de Manuel da Fonseca veio bem a propósito ou não tivesse sido ele a figura destacada (e presente) no I Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal que se realizou há 22 anos; também Romeu Correia, outro contador de histórias, mereceu ser lembrado, ele que tem tido a sua obra quase esquecida; igualmente a recordação de Rosa Colaço e desse mítico (e quase fundador) livro que foi A criança e a vida fez recuar no tempo, chamando a atenção para a sensibilidade que, desde cedo, pode invadir a escrita; Mário Ventura foi mencionado a propósito da história de Miguel Zuzarte e, não sendo de Setúbal, por aqui viveu e empurrou o nome da cidade para a história do cinema em Portugal – haja em vista a realização do Festroia –, motivo que levou Souta a sugerir que o nome de Mário Ventura deveria ser atribuído ao Auditório Charlot, espaço municipal sadino de encontros e de cinema (proposta certeira, diga-se, e a merecer ser levada avante); Sebastião da Gama foi chamado pelo seu Diário, obra de referência para a pedagogia e para o pensamento do professor, sobre ela afirmando Luís Souta que “é suposto num estágio o professor aprender”, mas Sebastião da Gama foi “um professor em formação que produziu um texto formador que veio a marcar a pedagogia”, outra forma de dizer que o Diário do poeta da Arrábida, registo do que foi o seu ano de estágio na Escola Veiga Beirão, é a marca de “um professor reflexivo”.
Luís Souta proporcionou, desta forma, um outro olhar sobre a escola. De outros tempos e igual para todos, é certo, mas valorizando a experiência e a literatura, chamando a atenção para a pluralidade de leituras que a arte pode conter.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Words, words, words...

Há palavras que se vão desgastando, não por se tornarem arcaicas no que designam, mas por perderem sentido, de tanto que se insiste no seu uso, banalizando aquilo que referem. Termos como "confiança", "responsabilidade", "convicção" e outros têm enchido discursos com mensagens que em tudo têm sido contrárias ao que acontece, ao que vivemos. É por isso que, simultaneamente, acorda a palavra "descrença", afinal algo que se vai tornando... uma convicção!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Fernando Savater: a revolução da ética

Escola e democracia – “A escola não é democrática. Nem deve sê-lo. A escola é a preparação para a democracia. Uma aula é hierárquica. O professor está sempre acima dos alunos. A escola deve estar a preparar os jovens para ser cidadãos. A escola não tem os mecanismos da democracia nem deve ter.”
Professor e autoridade – “Há uma teoria, uma tendência, que iguala os professores aos alunos e que faz com que os professores percam o respeito dos alunos. Convencionou-se que o professor tem de inspirar respeito dentro da aula. Ora, se o professor tem tanta autoridade como o aluno a aula não funciona.”
Aulas e treinadores – “As aulas não são uma reunião de amigos nem um recreio. São um lugar onde se transmite o conhecimento. Toda a gente aceita e entende que um treinador de futebol dê ordens aos seus jogadores. Já o mesmo modelo numa escola parece que começou a ser (erradamente) entendido como algo escandaloso.”
Políticos e nós – “Os políticos somos todos nós. Se os políticos que ocupam os cargos são incompetentes, somos nós que os elegemos, e fomos nós que, apesar de acreditarmos que podemos ser melhores do que eles, não nos oferecemos para o lugar deles. Os políticos não são seres de outro planeta que desceram à terra para nos dificultar a vida.”
Fernando Savater, entrevistado por Cristina Margato. Expresso (“Atual”): 31.Out.2010.